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Abílio Antunes: a lição do ascetismo

Marcos Vasconcelos Filho 13/04/2024
Abílio Antunes: a lição do ascetismo

Edifício São Francisco. Farol. Aos 93 incompletos, recebe-nos (a mim e meu pai) em aprazível lar um longevo médico, homem público (sinônimo de amor a seu Penedo) e, alguns anos mais, protagonista duma dentre minhas obras: Hélio Lopes (1922-2020).

Aproveitaria relatos seus noutro livro (o concernente ao evolver da Santa Casa de Misericórdia de Maceió). Sob aquela serena distinção, rememoraria ele, entre outros temas, o amigo, contemporâneo de bacharelado e cirurgião-geral de renome e escola Abílio Antunes dos Santos (8 abr. 1924 - 15 dez. 2006), cujo centenário inteira-se:

“Ele foi meu companheiro na pensão Chácara das Rosas, no Recife, e de turma, na Faculdade Fluminense. Uma vez, junto a outro colega nosso, o Osvaldo Vilela, boêmio, com quem, aliás, ele moraria no pensionato Sion, naquela cidade, viajou a um congresso de cirurgia em João Pessoa. À noite, o irmão do velho Senador sugeriu-lhe: - Abílio, há um barzinho aqui na esquina que tem uma cervejinha gelada e um tira-gosto bom danado; vamos lá?!

E ouviu: - Não saio do hotel pra nada, a não ser para o evento; infelizmente, não tenho tais hábitos; obrigado”.

Eis o típico perfil do ser ascético na autodisciplina. Mestre do bisturi (no desvelo aos indigentes, inclusive) num dos pavilhões do sesquicentenário Hospital de São Vicente, disputou na província a liderança ao arquirrival de especialidade e gestão interna, Ib Gatto Falcão (1914-2008), craque ambidestro dos procedimentos operatórios, o qual, naquele jeito corrosivo de ironizar, assim alcunhou, roufenho, o concorrente lusitano: “O português”.

Distintos impulsos psicológicos. Pelos moldes nietzschianos, o primeiro se filiaria ao semitom da ponderação. Bem-apessoado, abstêmio (fumante, embora), metódico, aristocrático, elegante no trajar do paletó sem gravata, fios à brilhantina (ao tempo de moço, uma tira de bigode e o discreto bico-de-viúva), estaria perto do impassível e da sisudez; preferiria a reserva, o distanciamento. O segundo, galalau e galã, era torrente; retroescavadeira; presunção; sarcasmo; ego; gênio.

Fonte - Acervo Marcos Vasconcelos Filho

Aquele: apolíneo; e, se vale o cotejo a partir de dois díspares modelos da Medicina Legal brasileira, houve-se a modo dum Flamínio Fávero (1895-1982). Este: dionisíaco, à la (todavia nem tanto quanto o jovial lente alagoano na Bahia) Estácio de Lima (1897-1984). Ou, conforme o léxico junguiano, na boca do vulgo: introversão versus extroversão.

Decênio dos 30. A criança aporta. O tio materno e tutor Antônio Francisco Antunes (daí a sigla do grupo: AFA) haveria de ser pioneiro na torra do café nas Alagoas.

Após os estudos formais e a transferência da capital pernambucana, Abílio Antunes diploma-se, a 21 de dezembro de 1949, pela hoje UFF e haure conhecimentos do professor mineiro e membro da Academia Nacional de Medicina Josias de Freitas (1918-2005).

Retorna ao chão. O ingresso na Santa Casa, porém, encontra óbices. Decorriam, afinal de contas, as provedorias Álvaro Peixoto-Luiz Calheiros (1947-1957), quando Ib Gatto exercia forte controle do quadro profissional. Numa solução, o pai (José Santos Coelho) remuneraria os internamentos a fim de o filho aprimorar a técnica.

Somente empós não apenas chefiou o Pavilhão II como o setor de cirurgia (durante as gestões do general Mário de Carvalho Lima e do ex-governador Sizenando Nabuco) e investiu-se na direção médica e na vice-provedoria do hospital-escola da Ufal. E aí, na nossa Universidade, além de titular das artesanias cirúrgicas, alcançaria a vice-direção da Famed.

O mesmo Hélio Lopes sempre proseava consigo no consultório, à rua da Alegria. Entretanto, naquela manhã, dera com a sala oca. Semanas correram, e houve, enfim, o reencontro fortuito: - Oxente, rapaz, aposentou-se de tudo ainda novo?!

- Hélio, eu fiz como o Pelé: quando queriam que jogasse mais uma Copa, ele pendurou as chuteiras. É o meu caso: melhor que me procurem agora do que estar na ativa e não ter pacientes. (Gargalhadas; abraço).

José Medeiros (1930-2015), dantes discente e colega nas docência e arte-ciência hipocrática, cheio de verve, a retórica ao serviço do parlamento e da educação pública alagoanos, expressou-se de sorte assaz feliz na relembrança póstuma:

“Gostaria de ter um bisturi - tão bom quanto o dele - que me possibilitasse adentrar a dimensão maior de sua extraordinária vocação médica para poder dizer alguma coisa que descreva a medicina que praticou: técnica, científica e humana”.

Neste país de tantas improvisações e fachadas, nunca jamais serão males ao futuro o rigor da disciplina, tampouco a elevação pelo conhecer.