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Semana santa

Carlito Lima 31/03/2024
Semana santa
Carlito Peixoto

Meus netos estão se empanturrados de chocolate para alegria da Nestlé e da Garoto. Essa invencionice comercial, venda da “comida dos deuses” durante a Páscoa, está definitivamente institucionalizada pela propaganda massiva. O ovo de chocolate e o coelho tornaram-se símbolos da semana da paixão e morte de Cristo. Um período apropriado à meditação, à oração, reverteu-se em festa do chocolate.

Os marqueteiros não combinaram com a Igreja, tão conservadora nos assuntos sobre sexo, pois, coelho é o símbolo de procriação, de fertilidade, e chocolate é alimento afrodisíaco. Portanto, os símbolos da semana santa moderna, inventados pelo comércio, são apologias ao sexo.

Gosto das tradições, tenho boas recordações da semana santa de meu tempo de criança.

Iniciava no Domingo de Ramos quando se comemora a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém montado em um burrico. Seus discípulos trouxeram dois jumentos puseram em cima deles suas vestes, sobre elas Jesus montou. A multidão cortou ramos de oliveiras, espalhou-os pela estrada, formando um tapete de folhagem para o Rei dos Reis passar, em cima de um jerico. O povo acompanhava Cristo, clamava: “Hosana ao filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas maiores alturas!”. Quando Jesus entrou em Jerusalém, toda cidade se alvoroçou. Perguntavam Quem é este cara? E a multidão clamava: “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia.”

Assim aprendi nas aulas de catecismo no Colégio Diocesano (Marista). Essa parte da história de Cristo é muito emblemática. Entrada triunfal num jerico, logo depois, traído e crucificado.

Entretanto, para moçada dos anos 50, o melhor do Domingo de Ramos era a procissão. Ela iniciava na Catedral, os colégios femininos religiosos compareciam: São José, Sacramento, desfile de meninas bonitas, a moçada assistia a procissão na intensão de paquerar as belas alunas. Um olhar, um sorriso, um piscar de olho valia a pena se postar à beira da calçada assistindo a procissão se arrastando que nem cobra pelo chão.

O feriado começava na quinta-feira santa, a partir desse dia era proibido comer carne, em compensação minha mãe cozinhava um delicioso bacalhau ou arabaiana ao molho de camarão, feijão e jerimum ao coco, bredo; uma delícia. Pena que esses deliciosos manjares dos Deuses só venham à mesa na semana santa.

Na noite da quinta-feira havia uma brincadeira perigosa. A moçada juntava-se em bando, cinco a seis moleques para “serrar velho”. A serração do velho é uma tradição europeia conhecida desde o século XVIII. Na Antiguidade reunia-se um grupo de brincalhões, diante da casa de um velho, na noite da quinta-feira santa serravam uma tábua com muito ruído, muito choro, muito lamento. Os velhos serrados irritavam-se com a brincadeira. Pela crença popular, velho serrado não chegava à próxima Quaresma. Na minha juventude fazíamos o ritual bem parecido.

Cantávamos alto tipo “incelênça” na porta de um velho conhecido:

“-As almas do outro mundo, vieram lhe avisar que deste ano o senhor não vai passar”. “-Encomende a alma a Deus, que seu corpo já não vale nada” e líamos um bem humorado testamento em versos. Os velhos ficavam irados. Levamos muitas carreiras. Seu Pádua, um velho ranzinza da Avenida da Paz, quando cantávamos seu “testamento” jogou um penico cheio de xixi, me molhou da cabeça aos pés. Corri para casa, tomei um banho e retornei ao local do crime, onde os amigos estavam às gargalhadas.

Na Sexta-feira da Paixão parecia que o mundo havia se acabado. As rádios só tocavam músicas clássicas ou fúnebres, era proibido ir à praia, até sorrir. As prostitutas fechavam as portas dos cabarés de Jaraguá, e o balaio; nem pensar numa fortuita noite de fornicação.

Finalmente o sábado de aleluia. A moçada preparava um boneco de pano, o Judas, sempre com um nome de algum político ou algum inimigo público.

Quando às 10 horas, os sinos da Igreja dobravam anunciando a aleluia, a moçada caía de cacete malhando o Judas amarrado em um poste. Melhor do que malhar um Judas, era roubar os Judas dos vizinhos, dos pivetes.

Afinal chegava o domingo da ressurreição. Os padres contavam a história como Cristo depois de morto subiu aos céus. Hoje acontece um espetáculo pirotécnico com atores globais, para se assistir comendo chocolate e tomando vinho. Uma festa de celebridades.