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Benoît Jacquot teria obrigado atriz de 17 anos a fazer cena sem calcinha, aponta nova denúncia contra o diretor

Em livro de memórias, Vahina Giocante lembra pressão do cineasta por nudez não prevista no roteiro

Agência O Globo - 25/03/2024
Benoît Jacquot teria obrigado atriz de 17 anos a fazer cena sem calcinha, aponta nova denúncia contra o diretor
Benoît Jacquot teria obrigado atriz de 17 anos a fazer cena sem calcinha, aponta nova denúncia contra o diretor - Foto: Reprodução

Mais uma atriz acusa o diretor francês Benoît Jacquot de comportamento abusivo. Em um livro de memórias recém-lançado na França, atriz Vahina Giocante deu um depoimento sobre a sua colaboração com o cineasta no filme "Pas de scandale", de 1999. Na época com 17 anos, ela teria sido pressionado por Jacquot para fazer uma cena sem calcinha.

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O diretor está na mira da justiça após ser acusado de estupro e de diversas violências contra sua ex-companheira, a atriz Judith Godrèche. Ela tinha 14 anos quando eles iniciaram um relacionamento e trabalharam juntos. Outra duas atrizes que trabalharam com o diretor (Julia Roy e Isild Le Besco) também o acusaram de assédio e abuso psicológico durante as filmagens.

Em entrevista neste domingo (24), a um canal francês, Giocante contou que decidiu contar a sua história para apoiar Godrèche, que iniciou a série de denúncias.

"Decidi nomeá-lo para apoiar as palavras de Judith Godrèche, para estar ao lado dela. Ela está certa. Coletivamente, podemos derrubar um sistema. É um exame de consciência a ser feito individualmente", explicou Giocante.

No livro, que sai na França com o título de "À corps ouvert", ela relembra as filmagens difíceis com Jacquot em "Pas de escandale". Na época ainda adolescente, ela fez uma cena em que se levantava da cama de camisola. O diretor pediu para repetir tudo de novo: "Vamos refazer a cena, mas dessa vez gostaria que você tirasse sua calcinha", teria dito à jovem. Giocante se negou, mas Jacquot teria se mostrado intransigente: "Sem discussão. É o meu filme. É assim", teria dito.

A atriz saiu do set e pediu uma calcinha "cor da pele" para uma assistente de figurino. Segundo ela, Jacquot não teria percebido o truque após refazer a cena. "Ele pensa que estou nua embaixo. Eu ganhei. E ele me lança um olhar de esguelha. Então, quando terminamos, vem até mim e diz: 'Você vê, quando a gente quer, não é tão difícil'. E sinto nesse momento essa relação de dominação. Me sinto realmente suja quando volto para casa."

Durante o resto das filmagens, o diretor teria se mostrado "odioso" com Giocante: "Ele percebe que isso não está funcionando muito bem comigo. E então, um dia, ele vem até mim e diz: 'Não sei se você entendeu, mas se você for boazinha, fará o próximo filme'. E eu respondo: 'mas eu não sou uma menina boazinha'."

Durante as filmagens, ela relata ter sentido diante do diretor "uma presa diante de um predador". "Me avisaram que Benoît Jacquot gosta de mulheres muito jovens. E eu realmente senti um pouco sua energia de sedução", revela a atriz.

Entenda o #metoo francês

A França vive desde o início do ano a sua própria versão do #metoo, com uma série de denúncias de atrizes contra os seus diretores. No início de fevereiro, Judith Godrèche apresentou queixa contra o diretor de cinema Benoît Jacquot, 25 anos mais velho. A relação entre os dois começou na primavera de 1986, quando Godrèche tinha apenas 14 anos, e terminou em 1992. Godrèche afirma ter permanecido “sob seu controle” por seis anos, estrelando dois filmes que ele dirigiu, “Les Mendiants” (“Os Mendigos”), em 1988, e “La Desenchantee” (“Os Desencantados”) em 1990.

Jacquot insiste que a primeira relação sexual entre os dois só aconteceu depois dela ter completado 15 anos, idade mínima permitida por lei. A atriz, por sua vez, o acusa de diversas violências físicas, sexuais e psicológicas, que teriam acontecido antes disso.

Na mesma denúncia feita à polícia, Godrèche relatou ainda duas experiências traumáticas com o cineasta Jacques Doillon durante as filmagens de “La fille de quinze ans” (A garota de 15 anos), em 1989. Ela tinha 15 anos na época e, ele, 45. O diretor teria abusado dela em seu escritório, enquanto ensaiavam sozinhos para a produção. Mais tarde, durante as filmagens, Doillon demitiu o ator que faria uma cena com Godrèche e tomou o seu lugar.

“De repente, (Jacques Doillon) decide que há uma cena de amor, uma cena de sexo entre ele e eu. E aí, fazemos 45 tomadas. E eu tiro meu suéter e estou sem camisa, e ele me apalpa e me beija de língua”, recordou ela em um programa de televisão.

O último caso aconteceu diante de toda a equipe do filme. No local, também estava presente a cantora e atriz Jane Birkin, ex-mulher de Doillon. Godrèche afirma que Birkin teria ficado perplexa, mas impotente, assim como diversos membros da equipe.

'Cumplicidade' da imprensa

O último relato tocou em um ponto sensível no país. Desde que o #metoo francês ganhou tração, vieram à tona diversas histórias que parecem comprovar uma certa normalização da violência sexual no mundo cultural francês. Nas palavras de Godrèche, uma “parte do cinema, e da imprensa que falava de cinema, validava (os abusos) e era cúmplice”.

Sinal dos tempos, tradicionais revistas de cinema fizeram seu mea culpa em textos publicados este mês. O semanário Télérama reconheceu a existência de um “sistema de mídia”, cujos elogios aos diretores teriam de fato servido de cumplicidade aos seus abusos. “O que estava debaixo dos nossos olhos e éramos incapazes de ver?”, indagou a publicação.

A lendária Les Cahiers du cinéma relembrou a sua própria admiração por Jacquot, sempre elogiado pelos críticos da revisa. “Se todo mundo sabia que atriz menor vivia com o diretor, por que ninguém foi buscar mais longe do que a ficção? Principalmente porque estava em jogo aí uma certa ideia de autor, defendida notadamente aqui na Cahiers: o cineasta misturava sua vida e seus filmes, sua prática e sua estética”.

Nos anos 1950, a Cahiers teve entre seus críticos futuros diretores da Nouvelle Vague, como Jean-Luc Godard e François Truffaut. Eles lançaram alguns princípios estéticos que foram seguidos por discípulos e estão presentes até hoje nos textos da revista. Tanto Benoît Jacquot quanto Jacques Doillon fazem parte de uma terceira geração da Nouvelle Vague, e por isso sempre tiveram amigos e admiradores na redação. Também é o caso de Phillipe Garrel, acusado de comportamento inapropriado com suas atrizes.

'O último Casanova'

No ano passado, uma reportagem do site investigativo Mediapart trouxe o depoimento de treze atrizes e profissionais do cinema que acusavam o ator Gérard Depardieu de abusar delas sexualmente nos sets de filmagem. Muitas teriam se queixado para membros da equipe na época, mas sem ser levadas a sério. Segundo elas, todos sabiam do comportamento do ator, mas fechavam os olhos por se tratar de uma lenda da indústria.

Recentemente, o próprio presidente Emmanuel Macron defendeu o ator o chamando de “monstro sagrado” em um pronunciamento oficial. Por outro lado, a ministra da cultura Rachida Dati expressou apoio a Godrèche em uma entrevista publicada na última sexta-feira no site “Le Film français”.

Da mesma forma, a relação de Jacquot com Godrèche era pública, conhecida na indústria e na imprensa. Há apenas cinco anos, o jornal Libération definia o diretor de 72 anos como “o último Casanova” em um perfil dedicado a ele. “(Jacquot) não renuncia a sua paixão pelos filmes e pelas garotas”, dizia a publicação. No mês passado, circulou nas redes um comentário de Jacquot gravado em 2011 para um documentário do psicanalista Gerard Miller sobre “personalidades e anônimos que transgrediram seus princípios para viver seu amor”. No trecho em questão, o diretor afirma que o relacionamento com Godrèche era uma “transgressão”, e o cinema dava “cobertura” para isso.

— Sim, foi uma transgressão — diz Jacquot no vídeo. — Pelo menos no que diz respeito à lei, tal como é dita, não temos esse direito em princípio, creio eu. Uma garota como ela, como essa Judith, que na verdade tinha 15 anos, não tinha direito. Mas ela estava se lixando para isso, e até ficou muito excitada com isso, eu diria.

Gerard Miller admitiu que um documentário com tais depoimentos nunca teria sido produzido nos dias de hoje. Logo depois, foi ele próprio denunciado por abusar de menores de idade, em alguns casos fazendo uso de hipnose em seu consultório psiquiátrico.