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Debbie Harry, do Blondie: ‘Não tenho mais como competir na indústria musical, por causa da minha idade’

Aos 78 anos, eterna musa do rock usa a voz que cativou o mundo com a banda Blondie em doc sobre tecnologia, lembra amigos como Andy Warhol e conta que gostaria de atuar em filme de 007

Agência O Globo - 19/02/2024
Debbie Harry, do Blondie: ‘Não tenho mais como competir na indústria musical, por causa da minha idade’

A voz de Debbie Harry, vocalista e alma da banda Blondie, é inconfundível. Mesmo quando ela surge meio fria e algo sinistra na narração de “So unreal” (2023), documentário da americana Amanda Kramer sobre o caráter profético do cinema ao imaginar a relação da sociedade com a tecnologia, é possível reconhecer a fala doce e calmante que hipnotiza gerações desde o momento em que “Heart of glass” (1978) se tornou o primeiro hit mundial do grupo de rock surgindo na cultura underground de Nova York.

— Senti que deveria modular uma voz sem corpo, mas que não fosse necessariamente robótica. Queria criar uma personagem narradora — conta Debbie, de cabelos agora naturalmente platinados, aos 78 anos, durante o Festival de Roterdã, onde “So unreal” ganhou première europeia. — O texto que Amanda escreveu para o filme é incrível, e isso me deu confiança para encontrar um tom para narrá-lo, sem precisar falsificar ou provocar arrepios nos outros.

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A filmografia de Debbie inclui trabalhos com diretores como James Mangold (“Paixão muda”, 1995), Peter Greenaway (“As maletas de Tulse Luper”, 2003), e Isabel Coixet (“Minha vida sem mim”, 2003). As participações em filmes ficaram mais escassas nas últimas décadas — até porque o Blondie voltou, embora reconfigurado, e de vez em quando sai em turnê — mas ela se diz aberta a propostas.

— Não recuso convites para cinema porque não recebo muitas ofertas. Não tenho mais como competir na indústria, por causa da minha idade. Mas, sabe, até gosto da ideia de fazer algo como a M, a chefe do Serviço Secreto Britânico, da série James Bond. Não seria legal? — pergunta, em tom sugestivo.

A cantora, que desenvolveu substancial carreira no cinema em paralelo com a música, particularmente após a separação do grupo original, em 1982, atua no novo documentário como narradora invisível, mas também surge na tela em um dos trechos de “Videodrome — A síndrome do medo” (1983), um dos primeiros sucessos comerciais de David Cronenberg. O thriller de terror do diretor canadense é um dos principais pontos de referência do filme de Amanda, pois foi um dos primeiros a trabalhar com realidade virtual, numa época em que o termo nem existia.

— Não sabíamos o que era “virtual” na época. Minha personagem não existia na nossa realidade, era uma espécie de avatar, não sabíamos como descrevê-la. Não sabíamos o que ela era ou o que fazia com os outros personagens — diverte-se Debbie, que divide os créditos de “Videodrome” com James Woods. — Também não havia um final para o filme e isso deixava as pessoas bastante nervosas, e o atormentavam com essas coisas. Queria trabalhar com Cronenberg de qualquer maneira. E até hoje ele está por aí.

Debbie admite que ela e Chris Stein, cofundador do Blondie e seu ex-companheiro, sempre se orientaram “por buscar algo diferente” em tudo que faziam. Quando a banda começou a fazer videoclipes, lembra a cantora, tudo era meio “primitivo”: encontrar uma boa iluminação, sincronizar os lábios com a música e “parecer fofos” para a câmera. Em 1981, ela se arriscou a incorporar o estilo futurista do designer H.R. Giger, que criou toda a arte de “Alien — O oitavo passageiro” (1979), de Ridley Scott, ao visual de seu primeiro álbum solo, o iconoclasta “Kookoo”.

— Giger teve carta branca, não interferimos em nada. Mas tudo parecia uma loucura, a comunicação era complicada. Mas ele tinha acabado de ganhar um Oscar (por seu trabalho em “Alien”)! Ele era suíço. Creio que aprender inglês não fosse a prioridade dele, e nós não estávamos aprendendo alemão rápido o suficiente. Então tudo foi uma questão de energia — ri a musa, que também chegou a escrever uma canção com o autor cyberpunk William Gibson, hoje considerado um visionário da internet.

‘Baratas culturais’

O Blondie foi oficialmente lançado em 1974 e tocou pelo circuito boêmio alternativo de Manhattan, berço de outros artistas como Patti Smith e Iggy Pop, antes de se tornar um fenômeno planetário. Foi uma das primeiras bandas a incorporar o rap, em “Rapture”, ajudando a popularizar o gênero que veio do gueto ao longo dos anos 1980. Mas também pagou caro quando o grupo começou a flertar com a disco music na virada daquela década, no auge do movimento que queria enterrar o som das discotecas.

— Perdi muitos amigos por causa disso. Foi uma loucura — lembra a intérprete de “Call me”, canção-tema do filme “O gigolô americano” (1980), de Paul Schrader. — Foi uma era emocionante de se fazer parte. Não éramos realmente orientados para os negócios, nenhum de nós da banda. Tudo que o fizemos foram apostas, era lançar os dados e ver o que ia dar. Éramos baratas culturais, e a cena da cidade era inspiradora em todos os sentidos. Continuamos jogando os dados e, eventualmente, tivemos que sair de Nova York.

‘Éramos todos meio lunáticos’

A crise do Blondie liberou Debbie Harry para mais aventuras nas telas. Contracenou com Alec Baldwin e Hanna Schygulla na comédia policial “Para sempre Lulu” (1986), do palestino Amos Kollek. Foi dirigida por Martin Scorsese em “Life lessons”, um dos três segmentos do longa-metragem “Contos de Nova York” (1989). Mas é a comédia musical “Hairspray — E éramos todos jovens” (1988), do sempre extravagante John Waters, que lhe traz memórias divertidas de um set.

— A gente não queria que “Hairspray” terminasse, de tão divertido que era. Havia muitas crianças e jovens atores no elenco, alguns eram aspirantes a grandes estrelas, outros eram maníacos sexuais, mas todos só queriam saber de dançar. Todos nós nos sentíamos bem e, realmente, só queríamos dançar e nos divertir — recorda Debbie, que no filme interpreta Velma Von Tussle, mulher que promove crenças racistas na TV que dirige.

Debbie Harry ainda mora em Nova York, mas diz que a cultura boêmia e underground que inspirou o Blondie e outros grupos da época, como o Ramones e o Talking Heads, do vocalista David Byrne, e de outros artistas lendários, há muito se foi. Ela lembra com certa melancolia da convivência com amigos e companheiros que também já se foram, como Johnny Thunders, guitarrista e vocalista de banda The New York Dolls, o poeta beatnik Allen Ginsberg e o papa da pop art Andy Warhol (“ele me ensinou muito a ouvir os outros”), e que deixaram sua marcas na cidade muito antes de sua gentrificação.

— Éramos todos meios lunáticos, sabe? A geração beat andando pelas ruas do Lower East Side de Manhattan. Eu encontrava Allen (Ginsberg) surgindo do nada, usando um de seus longos vestidos pretos. Vivíamos intensamente, e queríamos participar daquele momento de alguma forma. Gostaria que Johnny Thunders ainda estivesse vivo, adoraria ouvir o que ele escreveria agora, porque falava de coisas tocantes — diz a cantora. — Quando os aviões atingiram as Torres Gêmeas fiquei primeiro chocada, com raiva, e depois completamente triste. O único pensamento que tive foi: “Oh, Deus, gostaria que fossem os anos 1970 de novo!”.

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O Blondie já tem shows agendados para o próximo verão no Hemisfério Norte — e sem essa de shows virtuais, como a turnê “virtual” do grupo sueco Abba, representado por avatares. Mas Debbie ainda não tem certeza se a música do grupo tem algum apelo às novíssimas gerações. Não que esteja muito preocupada com isso:

— É uma coisa sobre a qual não posso fazer nada a respeito. Os tempos mudam, os gostos mudam, a tecnologia muda. O que temos é a sinceridade da música que fazemos. Gostamos da presença física, por que faríamos um show virtual? É um objetivo espiritual, mais do que econômico. Trata-se de sobreviver, ganhar dinheiro suficiente para comer, mas o show físico é alimento em outra forma. Não vejo como receber isso de avatares.