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Biblioteca Desacato resgata obras literárias malditas de vedetes e artistas que chocaram o país

Acervo virtual disponibiliza livros e revistas raros, jogando luz sobre 'bafões' da sociedade dos anos 1940 a 1960

Agência O Globo - 07/02/2024
Biblioteca Desacato resgata obras literárias malditas de vedetes e artistas que chocaram o país

Criada pelos pesquisadores Alberto Camarero e Alberto de Oliveira, a Biblioteca Desacato não poderia ter outro nome. No ar desde janeiro, o acervo virtual disponibiliza de forma gratuita livros de autores e autoras malditos, que afrontaram as barreiras morais de seu tempo e entraram em conflito com a justiça — frequentemente, acusados do crime de “desacato”. Também traz coleções de alguns veículos da imprensa social que circularam no Rio nas décadas de 1950 e 1960, como as esquecidas “Copacabana Ilustrada” e “Revista de Copacabana”.

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O arquivo foi inaugurado com títulos raríssimos escritos por Luz del Fuego (1917-1967) e Elvira Pagã (1920-2003). Sinônimos de pecado e devassidão, as vedetes celebraram um estilo de vida libertário, com pouca — ou nenhuma — roupa. Del Fuego foi pioneira do naturismo no Brasil; Pagã, a primeira mulher a usar biquíni em Copacabana.

Também provocantes são as incursões literárias das divas muito menos conhecidas. Seus livros foram ignorados pela imprensa na época do lançamento e hoje se encontram fora de catálogo. As cópias que sobreviveram podem atingir valores exorbitantes nos sebos virtuais.

— A biblioteca é um projeto sem objetivo comercial, para replicar esses livros na esperança de que sejam um dia reeditados — diz Alberto de Oliveira. — A maioria das obras são autobiográficas e é importante ter essas vozes contando a sua própria história, sem intermediários.

Vedetes proibidas

Quando saiu, em 1948, “A verdade nua”, de Luz Del Fuego, chegou a ser proibido nas livrarias e tratado como pornográfico. Hoje, um exemplar do livro pode alcançar milhares de reais em leilões. A cópia digitalizada para a Biblioteca Desacato, porém, foi encontrada em uma calçada de Copacabana, à venda por um valor infinitamente menor. Na obra, a dançarina exótica discorre sobre sua filosofia de naturismo e narra fatos autobiográficos.

Outro título de Del Fuego, “Trágico blecaute”, só tem uma cópia física conhecida, localizada na Biblioteca Pública de Nova York (EUA). A dupla de pesquisadores, que também são escritores e cineastas e atendem pelo nome de Os Albertos, ainda busca uma maneira de digitalizar este exemplar.

Elvira Pagã, por sua vez, já tem quatro livros no acervo: “Revelações” (1944), “Vida e morte” (1951) e os dois primeiros volumes de “Eu, Elvira Pagã” (1965 e 1987). Ela abre este último mostrando que é mais do que um símbolo sexual: “Fui criada pelas massas, que sempre viram em mim o que eu nunca tinha reparado... O meu físico escultural que chegou a ser símbolo nacional de beleza feminina”, escreve.

O público costuma associar Pagã ao glamour. Mas sua trajetória está mais para pitoresca e sombria. Após se divorciar de um milionário carioca, tentou o sucesso em Hollywood, adotou uma onça, fez uma passeata em cima de um elefante, viu sua tentativa de suicídio virar fofoca na imprensa, foi assediada por inúmeros homens e torturada pela ditadura. Nos anos 1970, descobriu o misticismo. Essa fase espiritualizada resultou em mais três livros, que serão digitalizados futuramente.

— Aquela mulher era a própria inadequação — conta Alberto Camarero. — Foi campeã das prisões por desacato, espancada pela polícia... No segundo volume de memórias, ela relata suas prisões pelo Dops na década de 1970 e expõe uma suposta correspondência com Fidel Castro.

Menos midiático do que Del Fuego e Pagã, o ator e escritor Antoni di Monti (1919-2003) é outro destaque do acervo. De acordo com os Albertos, em sua obra consta o primeiro uso da palavra “gay” no sentido usado hoje. Ainda assim, os livros de Monti permanecem desconhecidos, até mesmo entre quem estuda a homossexualidade na nossa literatura.

“Dos bares ‘gays’ só conheço, por enquanto, o Blue Parrot, mas é o bastante, pois, às sextas-feiras, tem no mínimo cem pessoas, todas ‘entendidas’. (....) Quanto às diferenças existentes entre as maneiras de amar, só mesmo pessoalmente poderia fornecer os detalhes...”, escreve ele em “Os lábios trêmulos” (1951), um roman à clef que retrata os círculos de sociabilidade liberais do período, e também disponível na Desacato.

Entre os espaços retratados por Monti está a lendária Boite do Sonhador, uma casa noturna improvisada no apartamento da poeta Yole Manon (conhecida como a “Sacerdotisa do Belo”). Composto pela nata do jet set “bafônico”, o grupo de frequentadores era ainda mais secreto do que a festa. Monti reproduziu o que via e ouvia nesses lugares. Embora a identidade dos envolvidos estivesse camuflada com nomes fictícios, os escritos colocaram Monti em rota de atrito com os amigos — o que pode ter contribuído para o seu posterior esquecimento. Paulista radicado no Rio, ele passou algumas décadas representando Jesus na “Paixão de Cristo” de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e no fim da vida voltou para o interior de São Paulo.

— Basta conhecer um pouco os círculos de amizade para saber quais pessoas reais estão descritas nos livros — diz Oliveira, que se refere aos personagens da obra como “dissidentes de sua época”. — Há pintores, socialites, bailarinos do Municipal e a própria Luz Del Fuego... Monti doou um enorme conjunto de cartas para a Funarte, mas o acervo da instituição está interditado desde 2020.

Segredos célebres

Os Albertos devem disponibilizar em breve outros livros com segredos da elite “bafônica” de outrora, como os romances “A outra face da society” (1958) e “Depoimento de uma desquitada” (1962), da atriz e escritora Odette Coppos.

Enquanto isso, os leitores podem matar a curiosidade por fofocas com a imprensa do período. O acervo tem todos os exemplares de “Copacabana Ilustrada” e “Revista de Copacabana”, duas publicações que retrataram a vida social, noturna e comercial do bairro a partir dos anos 1940. A “Revista de Copacabana” toma uma direção mais libidinosa nos anos 1950 e começa a publicar fotos de vedetes seminuas. Tanto que toda a tiragem de cem mil exemplares do nº 51 teve que ser entregue à Delegacia de Costumes.

Ainda mais imoral era a “Escândalo”, que em breve chegará de forma completa no acervo. Surgida em 1949, a publicação foi uma pioneira a fazer jornalismo marrom, trazendo à tona segredos de celebridades. Com o pseudônimo Freddy Daltro, o jornalista Nilson Risardi se infiltrava no mundo artístico para conseguir as suas bombas.

— Lá você achava o que era encoberto pelas outras revistas, o que é de interesse histórico — diz Camarero. — Se na “Revista do Rádio” saía que Cauby Peixoto ia se casar, na “Escândalo” você descobria a relação dele com homens. Daltro chantageava as celebridades. Quando o segredo saía na revista, era por que elas não tinham aceitado pagar.