Internacional
Modi inaugura templo hindu em local de mesquita destruída por religiosos na década de 1990
Espaço na cidade de Ayodhya era alvo de disputa entre hindus e muçulmanos a décadas, após demolição de espaço religioso islâmico motivar onda de violência que marcou a história do país
O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, inaugurou um templo em homenagem à divindade hindu Ram, na cidade de Ayodhya, nesta segunda-feira, colocando fim a uma disputa secular entre hindus e muçulmanos. O gigantesco templo foi erguido no local outrora ocupado por uma mesquita centenária, demolida por nacionalistas hindus — e agora permanentemente substituída pelo local sagrado da religião dominante no país.
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Ram é um dos deuses mais venerados entre os hindus da Índia — que são cerca de 80% da população de 1,4 bilhão de habitantes. Herói do épico Ramayana, ele é um rei e um modelo de virtude, exilado de sua terra natal, Ayodhya, que volta para casa para uma coroação jubilosa. Há semanas, a consagração do templo, marcada para esta segunda, era vista com entusiasmo por seguidores do hinduísmo, que penduraram flâmulas cor de açafrão por ruas e mercados, e cartazes com a imagem da divindade, anunciando o evento em todos os lugares.
No entanto, para os cerca de 200 milhões de muçulmanos que vivem na Índia, a inauguração do templo de Ram foi vista com desespero e desamparo, representando uma derrota histórica. A construção foi feita no mesmo local onde ficava a Mesquita Babri, destruída em 1992 por nacionalistas hindus, evento que desencadeou uma onda de violência sectária que deixou milhares de mortos.
A forma como a mesquita foi arrasada abriu um precedente de impunidade que reverbera até hoje: linchamentos de homens muçulmanos acusados de abater ou transportar vacas, espancamentos de casais inter-religiosos para combater a chamado “jihad do amor” e – em um eco de Ayodhya – “justiça com escavadeiras”, em que as casas de muçulmanos são arrasadas por autoridades sem o devido processo legal, na sequência das tensões religiosas.
A inauguração do templo — e o fato de Modi ter sido a estrela do evento — foram apontados como sinais de que a narrativa nacionalista-hindu ganha cada vez mais espaço dentro do governo indiano, e que o premier não se importará de intensificar este processo na busca por seu terceiro mandato.
Enquanto os pais fundadores da Índia esforçaram-se para manter o Estado afastado da religião, considerando a divisão como um fator crucial para manter a coesão do país após o derramamento de sangue provocado pela divisão do subcontinente indiano de 1947, que separou o Paquistão e a Índia, Modi normalizou o oposto.
Depois de completar os rituais de consagração ao lado de religiosos, na segunda-feira, Modi prostrou-se diante da estátua de Ram, esculpido com um largo sorriso, olhos em pedra preta e enfeitado com joias. A imagem de Modi como político e uma espécie de líder espiritual do país são cada vez mais indissociáveis. O chefe do seu partido descreveu-o recentemente como “o rei dos deuses”. Antes da inauguração, a cidade estava coberta de cartazes e outdoors do deus hindu e do político, lado a lado.
O premier cultua essa imagem. Antes da inauguração do templo, entrou em um ritual de purificação de 11 dias. Modi foi visto percorrendo templos por todo o país, e quando seu gabinete divulgou fotos dele em sua residência alimentando vacas, que são vistas como sagradas por muitos hindus, canais de televisão as exibiram como notícias de última hora.
Entre as suas expressões de devoção religiosa, Modi cuidou do trabalho do Estado, inaugurando grandes projetos que perpetuam a sua imagem de defensor do desenvolvimento. De acordo com analistas, a mistura de religião e política — somada à exploração dos vastos recursos ao seu serviço — conseguiu, de certo modo, fazer com que questionamentos a ele seja o mesmo que questionar os valores hindus, algo semelhante à blasfêmia.
— Hoje, nosso Ram chegou. Depois de séculos de paciência e sacrifício, nosso Senhor Ram chegou. É o início de uma nova era. — disse Modi durante a cerimônia, vista como uma coroação do movimento nacional que visa estabelecer a supremacia hindu.
Disputa política em torno de local sagrado
O templo de Ram foi construído no local onde ficava a secular mesquita Babri, construída por um comandante militar do Império Mughal — o reinado muçulmano que governou parte do subcontinente indiano — no século XVI. Para o hinduísmo, o período do império deixou como herança a rivalidade com o Islã, e ao menos uma corrente político-religiosa afirma que a mesquita foi construída no local de um antigo templo em homenagem a Ram. Em 1949, logo após o Reino Unido deixar a Índia, ativistas hindus levaram ídolos representando Ram para a mesquita, de acordo com documentos judiciais, o que intensificou a disputa pelo local.
Contudo, foi apenas na década de 1980 que a recuperação do local surgiu como um objetivo importante para o movimento Hindutva, que se opõe a líderes seculares como Gandhi e defendem a ideia da Índia como um Estado Hindu— um de seus integrantes, Nathuram Godse, assassinou Gandhi, em 1948. O jovem Narendra Modi participou de campanhas pela construção do templo.
Em 1992, o partido político que representa o Hindutva, o Partido Bharatiya Janata (BJP, hoje dirigido por Modi) e os seus grupos afiliados mobilizaram quase 100 mil pessoas para se reunirem em Ayodhya em 6 de dezembro. À frente do governo local, a sigla ordenou que a polícia não impedisse que a multidão cercasse, invadisse e destruísse a mesquita.
Por décadas, o terreno em questão foi alvo de uma série de disputas judiciais, ficando amarrado por uma série de decisões. Em 2019, após a vitória de Modi para um segundo mandato, a Suprema Corte abriu caminho para ao desfecho atual. Considerou que a destruição da mesquita tinha sido um ato ilegal, mas depois emitiu uma sentença que liberou a construção do templo hindu. Aos muçulmanos, foi oferecido um terreno baldio a quilômetros de distância.
O templo foi erguido em uma área de 70 acres e a um custo de quase 250 milhões de dólares. O dinheiro foi arrecadado de forma privada, mas muitos aspectos da consagração foram feitas pelo Estado. A cidade de Ayodhya também ganhou um novo aeroporto, serviços de trem e grandes melhorias urbanas. Chefes de alguns partidos políticos, bem como alguns líderes religiosos hindus, recusaram-se a comparecer à cerimônia pela confusão entre Igreja e Estado. (Com The New York Times)
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