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Vivi para contar: 'Você sente que um braço está sendo arrancado e não pode fazer nada', diz jornalista perseguido na Nicarágua

Camilo de Castro Belli foi considerado um 'traidor da pátria' pelo regime Ortega após denunciar escândalos de corrupção e defender estudantes e indígenas durante onda de protestos

Agência O Globo - 31/12/2023
Vivi para contar: 'Você sente que um braço está sendo arrancado e não pode fazer nada', diz jornalista perseguido na Nicarágua
Daniel Ortega - Foto: Reprodução

Camilo de Castro Belli, 45 anos, é um jornalista, cineasta e defensor dos direitos humanos da Nicarágua que desde 2019 vive em exílio na Costa Rica. Em 9 de fevereiro, um dia depois do nascimento do seu filho, o regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo declarou que ele era um "traidor da pátria". Com a decisão, Belli não só perdeu a nacionalidade nicaraguense, como também a casa onde viveu a maior parte da vida com sua família.

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Camilo é filho de Gioconda Belli, uma das maiores escritoras da Nicarágua que hoje, aos 75 anos, vive exilada na Espanha. A poetisa integrou a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) nos anos 1970, quando o movimento revolucionário lutava contra a ditadura de 40 anos da família Somoza — o próprio Ortega fez parte da FSLN antes de ser presidente, em 2007. Assim como sua mãe e seu pai, um brasileiro que lutou contra o regime militar no Brasil, Camilo tornou-se um alvo político.

Ao GLOBO, ele relata a sua história e clama por apoio da comunidade internacional para que as violações aos direitos humanos na Nicarágua não caiam no esquecimento.

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Confira os principais trechos do seu depoimento.

"Em 2002, depois de passar 12 anos nos EUA, voltei à Nicarágua para trabalhar em um programa de notícias na TV como jornalista investigativo. Quatro meses após a posse de Ortega, em maio de 2007, fiz a primeira grande denúncia de corrupção no governo. Através de uma investigação, revelamos uma rede de extorsão sob o comando da FSLN.

Assim que a reportagem foi divulgada, as repercussões foram extremamente duras: fomos o primeiro meio de comunicação a ser invadido pela polícia. Eles tomaram nossos escritórios, nossos computadores, abriram um processo contra o meu chefe. Me dediquei por oito anos ao jornalismo investigativo, mas estava contrariando muitos interesses e senti que era muito arriscado continuar.

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Decidi abdicar do jornalismo em 2010 e abrir uma produtora com a minha companheira, Leonor Zuñiga, na qual nos dedicamos a filmar documentários. Desde o início, o governo se esforçou para desacreditar o nosso trabalho, alegando que éramos um grupo financiado por interesses estrangeiros e ligados aos Estados Unidos. Dois anos depois, fundei com outras pessoas um movimento ambientalista que reuniu estudantes e jovens indígenas. Ali começou o meu trabalho como defensor dos direitos humanos.

Estopim da revolta

As ameaças diretas contra mim começaram em 2018, quando havia acabado de filmar depois de dois anos na Reserva Biológica Índio Maíz, uma das mais preservadas da América Central. Lá, nos deparamos com madeireiros ilegais invadindo o território. Denunciamos o caso, mas o governo não respondeu. Até que, em 4 de abril daquele ano, um deles provocou um incêndio na floresta. O governo agiu tarde para conter o fogo, que se propagou. O caso foi a faísca que desencadeou a onda de protestos da Rebelião Cidadã.

Estudantes saíram às ruas para protestar contra o governo, e muitos deles faziam parte do movimento ambientalista que fundei. Como resposta, o governo estabeleceu uma área de segurança ao redor da reserva para impedir que pessoas entrassem ou saíssem e os jornalistas documentassem o que acontecia. Como eu trabalhava junto da comunidade, imediatamente os ajudei a fazer jornalismo cidadão: 'Gravem áudios, vídeos, e me mandem.' E foi isso que fizemos. Eu compartilhava com a imprensa tudo o que eles me passavam.

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As manifestações foram fortemente reprimidas, o que estimulou mais pessoas a irem às ruas. Outras pautas se somaram às manifestações, que explodiram no país. Em um mês, 325 pessoas foram assassinadas pelo regime. Cerca de 60% dos mortos nos protestos foram atingidos por tiros na cabeça ou no peito, disparados tanto por franco-atiradores quanto por paramilitares à paisana. Eventualmente, começaram a apontar o dedo para mim, dizendo que eu era um dos que instigavam os protestos.

Em junho daquele ano, começou a Operação Limpeza, quando o governo armou paramilitares e ex-integrantes de milícias nos anos 1980 para desmobilizar os manifestantes. Os estudantes haviam tomado as estradas e as universidades como uma medida de protesto, mas também de autoproteção, já que tinham medo de ser presos ou mortos se voltassem para casa. O país chegou a ter 1.200 presos políticos na época.

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Em julho de 2019, decidi me exilar na Costa Rica. O êxodo depois da operação é impressionante. Estamos falando de um país que tem 6,8 milhões de pessoas e 750 mil pessoas emigraram, 10% da população.

A esperança era de que, nas eleições de 2021, o governo teria de ceder e fazer eleições transparentes, mas não foi o que aconteceu. Em maio daquele ano, o regime começou a prender todos os candidatos à Presidência. Começamos uma campanha na Costa Rica para dar visibilidade à situação e, graças a esse movimento, 222 presos políticos foram libertados e enviados para os Estados Unidos em fevereiro deste ano.

Mas o governo tirou a nacionalidade de todos eles — e a minha também. Todos os meus bens e da minha família foram confiscados. Para mim, foi uma represália pelo meu trabalho, pela campanha que fizemos, por toda a minha trajetória. Não há possibilidade de defesa e nem advogados que queiram me defender, porque, se algum aceitar meu caso, pode parar na prisão ou no exílio.

Recebi a notícia do confisco no dia seguinte ao nascimento do meu filho na Costa Rica, que estava sob cuidados médicos intensivos. Ele passou 10 dias na UTI e ficou muito próximo da morte. Eu só consegui pensar sobre toda a situação quando ele saiu do hospital.

A casa foi um projeto do meu pai, que construiu pensando no nosso futuro. A nossa família vivia lá desde 1988. Ela fica em uma espécie de reserva, que sempre tivemos muito cuidado em manter. Uma das árvores eu plantei quando tinha 12 anos. É doloroso saber que não posso voltar e não sei o que vai acontecer com aquele lugar. Agora que a propriedade está em nome do Estado, um dos meus maiores medos é pensar que alguém pode destruir aquela floresta. Você sente que um braço ou uma perna está sendo arrancado e não pode fazer nada a respeito.

Com apoio de um coletivo de direitos humanos, estamos recorrendo à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para exigir que o governo nicaraguense não apenas devolva nossa propriedade, mas restaure a nossa nacionalidade. Mas isso pode levar de 15 a 20 anos. Para mim, é mais um gesto simbólico, já que não podemos recorrer à Justiça da Nicarágua.

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Eu sou nicaraguense e tenho cidadania costarriquenha e brasileira. Quando a decisão foi publicada, enviei uma carta à embaixada brasileira solicitando acompanhamento, já que sou brasileiro e fui ilegalmente desapropriado da minha propriedade. Eles me responderam que era complicado e, quando fui ver depois, o Brasil estava apoiando o Ortega na Organização dos Estados Americanos (OEA).

Eles mudaram de posição, o que eu aplaudo e comemoro. Mas, embora o governo brasileiro tenha adotado uma postura menos ambígua em relação à situação na Nicarágua, deveria fazer muito mais para condenar as violações dos direitos humanos no país."