Internacional

Sem conseguir voltar para Gaza, palestinos tentam sobreviver no Egito

Centenas de moradores apanhados fora do enclave pelo início da guerra entre Israel e o Hamas passam por dificuldades no país vizinho

Agência O Globo - 20/12/2023
Sem conseguir voltar para Gaza, palestinos tentam sobreviver no Egito
Foto: Reprodução

Cerca de 400 pessoas estão na lista criada pela psicóloga Amal Awni com nomes de quem veio de Gaza para o Egito antes de a guerra entre o Hamas e Israel começar, mas que agora não consegue voltar para casa. Muitas delas vieram para tratamentos médicos. Hoje, equilibram a luta para se manter na capital egípcia com vistos vencidos, dinheiro no fim e a preocupação com a família na zona sitiada. O mesmo aconteceu com Amal e quatro amigas que hoje vivem em um apartamento de dois quartos no centro do Cairo.

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O grupo se dedicava a um projeto local de alfabetização e apoio psicológico a crianças e adultos expostos à violência. A iniciativa era financiada por palestinos. As cinco vieram no dia 27 de setembro participar de um treinamento no Cairo, menos de duas semanas antes do ataque do dia 7 de outubro.

Só com visto e transporte, cada uma gastou o equivalente a quase R$ 400 para chegar até a capital egípcia em uma exaustiva viagem de carro.

— Saímos às 5h da manhã e chegamos às 3h da manhã do dia seguinte — contou Etab Kemal, que hoje vive no mesmo local que Amal, no Cairo. — Estávamos hospedadas no mesmo prédio, no apartamento de um egípcio. Quando a guerra estourou, ele aumentou o aluguel e não conseguimos pagar o valor. A gente se mudou, então, para este, que pertence a um sudanês.

Elas estão conseguindo pagar o aluguel de cerca de R$ 1.600 e arcar com outras despesas para sobreviver graças a doações que recebem. Ao serem perguntadas sobre o que mais precisavam, Amal foi direta ao dizer que, para ela e as quatro amigas, nada no momento, mas demonstrou o tempo todo preocupação em conseguir meios de ajudar as centenas de palestinos que, como elas, acabaram sendo forçados a viver fora de Gaza.

Naquela tarde nublada, o telefone dela tocou duas vezes durante a entrevista. Ela se mostrava empenhada com o assunto tratado nas ligações: o problema de saúde de palestinos que não conseguem voltar para casa. Um dos casos que ela tenta ajudar é o de uma paciente de neuro-oftalmologia que precisa passar por mais uma cirurgia e de medicamentos para 3 meses de tratamento, despesas que somam cerca de R$ 1.500. Ela vem enviando mensagens a várias pessoas em busca de ajuda.

Amal contou que trabalhava com causas humanitárias há 8 anos, em Gaza. Ela pode priorizar a ajuda ao próximo, mas não deixa de lado as questões pessoais que também lhe têm causado angústia. Naquele mesmo dia, ela tinha conseguido falar com a irmã e o marido, com quem se casou em setembro. A vontade de ajudar os que ainda estão em Gaza parece inabalável.

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— Eles estão bem, mas sofrem com a escassez de alimentos, água e dinheiro para o que precisam — contou.

A casa nova em que ela e o marido moravam foi bombardeada. Ele sobreviveu, ficou apenas ferido.

— Quero trazer meu marido para o Egito logo, mas é caro e muito difícil. Não tenho como voltar para Gaza, minha casa foi destruída. Para onde eu iria? — indagou, acrescentando que a casa da irmã também foi bombardeada e que um sobrinho de 5 anos ficou ferido.

Sem contato com o enclave

Sentada em uma poltrona na sala, Etab contou que não conseguia contato com a família nem com amigos fazia quase uma semana.

— Estamos tentando ficar bem para ajudar nossas famílias — disse.

Nenhuma delas recebeu ainda a notícia de que perdeu algum familiar neste conflito que já matou cerca de 20 mil pessoas em Gaza.

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— Apenas um dos meus irmãos se feriu — conta Heba Salew, que tem 16 irmãos.

Ela descreve a casa da família como espaçosa, em um terreno grande, e conta que atualmente o local abriga cerca de 200 pessoas, já que muitos deslocados foram recebidos pelos pais dela. Heba também parece mais preocupada em ajudá-los do que com seu próprio sustento no Cairo.

Essas palestinas criaram uma iniciativa que chamaram de Sumood, que quer dizer “resiliência” em árabe. Foi no Instagram que a ativista e empreendedora dos Estados Unidos que se apresenta apenas como Dahlia conheceu a iniciativa de Amal. Ela também faz uma campanha para arrecadar dinheiro para ajudar os palestinos deslocados.

— Cada um tem uma necessidade específica. É importante ir até lá e identificar quais são. Não se trata apenas de dinheiro... apoio psicológico também, além de necessidades básicas — disse a ativista que revelou estar vindo para o Cairo dentro de uma semana para trazer doações.

Ataques não param

Depois de atacar as regiões norte e central de Gaza, Israel segue intensificando os bombardeios ao sul, aumentando a pressão para que o Egito receba todos os palestinos do enclave no Sinai, do outro lado da fronteira, o que o Cairo já disse que não aceitará. Algo que as jovens palestinas parecem não abandonar é a esperança de um dia poderem voltar para o lugar de onde vieram.

— Não queremos que Gaza seja a nossa terra? Então porque deveríamos deixá-la? — questionou Etab.

Horas antes da entrevista, uma manifestação no centro da capital egípcia ocupou as escadas do emblemático prédio do Sindicato dos Jornalistas. Além do fim do conflito entre Israel e Hamas, o grupo se posicionou contra a expulsão dos palestinos do seu próprio território.

— Eu acho que o Egito não pode aceitar instalar palestinos no Sinai. O povo egípcio rejeita isso e os palestinos também. Isso significaria um fim para sempre das questões da Palestina — resumiu a jornalista Nour Elhoda Zaki, que participou do evento pró-Palestina e também tenta ajudar o grupo que não consegue deixar o Egito no momento.

*Especial para O GLOBO.