Brasil
Em oito anos, ‘Tio Patinhas’ foi de acusado por pequeno furto a líder de facção no Amazonas
Clemilson dos Santos Farias manda matar desafetos e deixa bilhetes ao lado dos corpos; sua mulher foi recebida no Ministério da Justiça
Diante de um juiz em uma audiência de processo infracional, o adolescente não conseguiu esconder a tatuagem que dizia mais do que seu depoimento lacônico. Em um dos braços, o menor trazia uma imagem do Tio Patinhas, o personagem da Disney ávido por acumular dinheiro, e uma inscrição da principal facção criminosa do Rio de Janeiro.
No mundo do crime no Amazonas, Tio Patinhas é o apelido de Clemilson dos Santos Farias, de 45 anos, apontado pela polícia como o número dois da facção no estado e responsável pela logística do tráfico de drogas, pela contabilidade, lavagem de dinheiro e por ordenar a morte de desafetos. Clemilson ficou nacionalmente conhecido em novembro depois da revelação pelo jornal “O Estado de S. Paulo” que sua mulher, Luciane, foi recebida por assessores do ministro da Justiça, Flávio Dino, aprovado nesta semana para ser o novo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
Questionado sobre a tatuagem, o adolescente desconversou.
— Essa história me chamou muita atenção. Como é que um adolescente faz uma tatuagem dessas? Ali me pareceu claro que ele (Clemilson) tem bastante relevância neste meio, e as pessoas fazem apologia à sua figura. Esse é o simbolismo que ele tem no Amazonas — afirmou um integrante do Judiciário presente na audiência.
Projeção
Até meados de 2015, Clemilson era praticamente desconhecido no Amazonas. Sua ficha criminal se resumia a um furto em maio de 2007 na empresa Samsung, onde era colaborador. Ele ganhou destaque depois de uma operação que isolou, em presídios federais, as principais lideranças da facção hegemônica no Amazonas à época, aliada da organização a que pertence Tio Patinhas.
Batizada de La Muralla, a operação foi deflagrada pela Polícia Federal em novembro daquele ano, dando um duro golpe na facção. Naquele momento, os investigadores já haviam mapeado uma rixa entre integrantes do grupo com a principal facção criminosa de São Paulo. Segundo o relatório final da La Muralla, diversas mensagens interceptadas deixavam claro que, ao mesmo tempo, a facção amazonense tinha uma forte relação ou aliança com a organização criminosa do Rio. A disputa culminou num dos maiores massacres em presídios do país, em janeiro de 2017, no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus.
No ano de sua ascensão no crime, em 2015, Clemilson foi preso duas vezes. Na primeira, tinha cinco pistolas calibre .40, um revólver .38 e uma submetralhadora .9mm. Na segunda, foi encontrado numa propriedade avaliada em mais de R$ 1 milhão, com 15 bananas de dinamite, armas de fogo, munições, entorpecentes, balança de precisão, colete à prova de balas e dinheiro em espécie. Pouco depois, uma foto de Clemilson com uma metralhadora .50, capaz de derrubar pequenas aeronaves, viralizou nas redes sociais — arma mais tarde apreendida na residência do Tio Patinhas de Manaus.
Segundo um relatório de inteligência da Polícia Civil do Amazonas, obtido pelo GLOBO, Clemilson é suspeito de ser mandante de várias mortes em Manaus. Em parte delas, diz o documento, os assassinos deixaram bilhetes ao lado dos corpos com mensagens como “devia ao Tio Patinhas” ou ainda “Tio Patinhas que mandou”.
A Polícia Civil diz que, em 2017, Tio Patinhas foi acusado de mandar matar, por engano, a irmã da mulher de um dos líderes da facção amazonense. O alvo correto seria a mulher do rival. O delegado Rodrigo Torres, diretor do Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc) e ex-secretário de inteligência do Amazonas, diz que Clemilson faz questão de demonstrar poder aos seus rivais:
— Nos crimes que comete, age com muita crueldade. Responde a várias mortes com esquartejamento, deixando o corpo de um lado e cabeça do outro.
Rota do Norte
Com localização estratégica, o Amazonas alcançou uma importância sem precedentes como rota para a passagem da droga com origem em países andinos. Em pequenos barcos, usando rios como o Solimões, Negro e Madeira, as quadrilhas carregam grandes quantidades de cocaína e skunk, distribuídas então para o restante do país ou enviadas à África e à Europa. A rota passou a ser mais relevante depois de uma batalha travada em 2016, na fronteira do Brasil com o Paraguai, entre as principais facções carioca e paulista.
Depois que os líderes da organização do Amazonas foram isolados em presídios federais, a facção rachou, o que abriu espaço para o grupo carioca no Amazonas, não mais apenas como um aliado.
Clemilson é apontado como o financiador de uma fuga de presos num presídio de Manaus em maio de 2018, quando 35 detentos ligados à facção carioca conseguiram escapar e alguns continuam foragidos. Com o dinheiro do tráfico, Tio Patinhas comprou um apartamento e abriu uma transportadora em Pernambuco. Mudou-se com a mulher e as filhas, fugindo da polícia e dos rivais de outras facções.
Quando foi novamente preso, em Jaboatão dos Guararapes (PE), em um prédio de classe média alta, tinha cadernos com a contabilidade do tráfico e comprovantes de “um complexo e intenso fluxo de recursos” em diversos bancos. “Trata-se de um custeamento para manutenção da estrutura em torno do tráfico nesta cidade”, escreveu a desembargadora em sua decisão. Tio Patinhas foi absolvido em primeira instância e condenado na segunda a 31 anos e 7 meses de prisão, por financiamento ao tráfico, associação para o tráfico, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Foi no mesmo processo que sua mulher, Luciane Barbosa Farias, foi condenada a dez anos de reclusão por associação ao tráfico, organização criminosa e lavagem de dinheiro. De acordo com a desembargadora, Luciane “era a responsável por acobertar a ilicitude do tráfico, ao efetuar compra de veículos, apartamentos e até mesmo abrindo empreendimento”. Nas redes sociais, Luciane se apresenta como ativista de direitos humanos e estudante de direito.
Comunicação sem celular
Clemilson ficou em prisões federais de 2018 a 2020. Está hoje no Centro de Detenção Provisória 1, em Manaus, em uma cela individual de um pavilhão exclusivo de integrantes da sua facção. Apesar de as celas não terem energia elétrica e antenas bloquearem o sinal de celular, a polícia sabe que Tio Patinhas segue comandando a rota do Solimões na região Norte.
— Ele continua ordenando mortes, cuidando do tráfico, tomando conta da contabilidade. No parlatório com advogados e em dias de visitas, passa as determinações para os soldados cumprirem — afirmou o delegado Torres.
O GLOBO não localizou a defesa de Clemilson e sua mulher, Luciane. Em juízo, ambos negaram os crimes. Dona de um salão de beleza, Luciane afirmou que seus bens, como carros e apartamento, foram comprados com o lucro do estabelecimento. Já Clemilson recorreu ao trabalho com frete para justificar seus rendimentos.
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