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Amor, tentativa frustrada de definição

Léo Rosa 23/11/2023
Amor, tentativa frustrada de definição
Léo Rosa

Esforços de significação. Para o que este texto interroga, enuncia o Aurélio: “sentimento terno ou ardente de uma pessoa por outra, e que engloba também atração física”. Conforme o Houaiss: “atração baseada no desejo sexual”. Esta definição alicerça o amor no desejo sexual. Aquela põe o sexo como um agregado, ainda que necessário.

Essas definições não bastam. Amor é mais. É uma química, e acontece no plural, entre pelo menos duas pessoas. Vontade unilateral não é amor. É estéril insistência, resulta em infelicitação. Sem correspondência, o anseio amoroso converte-se em rancor, em mágoa que não sara, em fixação doentia no objeto que se nega ao sujeito desejante.

Ainda menos verdadeiro – embora na “moda” – é o amor autodeclarado. Que se invente outra denominação para essa jurada apreciação que corações desertos afirmam dedicar-se. Onanistas, jurar amor a si e declarar-se em satisfação é só outro nome para a solidão glamourizada como solitude. Não perduraria, nem se nomeará amor se não houver reciprocidade amorosa.

Mas o desejo recíproco é bastante? Não o é. Há que existir, além do desejo afetuoso do outro, uma espagiria que provoque ardências, sustente o tesão. O amor que persiste nunca dá por saciado o desejo, mesmo quando todos os desejos se saciarem. O amor válido é o sempre atiçado: amor ávido que persiste vontade, ainda que a vontade esteja de corpo cansado.

Amor também é conflito, dado que é relação de poder. Posto o amor, nasce a angústia de alcançar controle. O\a amante quer o\a amado\a submetido\a às suas exclusivas pretensões. Para mais e melhor fiscalizar, marca presença acachapante. O amor fica grudento. A relação é posta “na base do só vou se você for” (Vinícius); se você for, eu vou também.

A coisa se consome na presença cobrada e na distância monitorada. Posse e dominação. O cotidiano, assim banalizado, cansa. O amor se põe ofensivo, mas o ser desejado, já só objetificado, perdido de paixão – o amor em seu estado quente, exaltado –, ilude-se: confunde domínio como afeição. No propor um ser todo meu está a violência da marcação cerrada.

Acreditar que há eficácia no controle, apostar no grosseiro “manter em rédea curta” é um equívoco da ânsia controladora. Ora, é difícil controlar comportamento e impossível controlar vontade. O “investimento” tem de ser em si, no sentido de se fazer desejado\a. Se me faço o desejo do outro\a, o\a outro\a gravitará espontaneamente ao meu redor.

E os amantes, quanta mentira dão-se a dizer: vantagens contadas; juras vazias, amarrações a malograr. No mais das vezes, é isso mesmo: palavras sem lastro, compromissos a não cumprir. “Amar é dar o que não se tem ”(Lacan). Promete-se o que não se pode entregar, inclusive o “amor para toda a vida”, não obstante “só ser eterno enquanto dure” (Vinícius).

Amor também é cultura: nos jeitos, nos rituais, na intimidade. A cultura lhe dita os modos, pauta-lhe até os momentos essenciais. As partes se declaram, entregam e seguem conforme os ditames sociais, ou não se sentem nos conceitos prestigiados. As formatações sociais estabelecem as aparências públicas e privadas do sentimento de amor.

Amar de forma alternativa à que se ama em uma circunscrição de lugar e tempo é ofensivo às expectativas gerais de se cumprir a relação amorosa. O amor é entregue em holocausto aos ritos solicitados pelos costumes: etiquetas de atenção, rituais de obrigações, publicações de felicidade. Há um gozo doentio nisso, mas que se realiza pleno de cumplicidade.

Amor ademais é havido como uma moral edificante, tem uma ética exortatória. Brincamos com as quebras da moral amorosa, traímos o discurso embutido em sua ética: é quando fazemos malcriação doméstica com o amor (impudicícias); é quando nos damos licenças por fora do contrato (tácito) da relação (traímos, somos inescrupulosos com nosso par).

Muitas outras coisas, ainda bem, acontecem. Coisas mundanas assentas na realidade, contaminam os modos enlevados, atributo dos princípios amorosos: quem fazia amor, agora, fode com vontade. Sim, há a pureza amorosa. Encontra-se-a como ternura, gentileza, cuidado; como inocência, até. Tudo isso compõe o amor. Mas amor também será bandalheira.

Nesse ponto incide outro equívoco: confunde-se atração amorosa com gana de sexo. Todavia, amor é amor e sexo é sexo, ainda que a conjugação de ambos pareça ser, segundo a tradição declarada, o ideal constitutivo da relação. Suponho que haja um percentual significativo de amantes com tesão recíproca, porém são inegáveis os deleites do puro prazer da carne.

Conteúdo sacana: se não houver fêmea se esfregando sequiosa, dando-se toda, não haverá amor; se não houver macho cobiçoso lambuzando a fêmea, se não houver pegada, o amor não será a contento. Amor é carinho, mas morre sem sexo puto, com pecado. A fêmea quer ser tomada; o macho quer tomar. Se tudo pode, isso pode ser invertido? Pode e deve, em havendo desejo por qualquer outro modo de transar.

O amor se realiza no gozo. Quero objeto; sou objetificado. Se não faço do outro o objeto do meu gozo, nunca saciarei o meu gozar. Se não me objetifico ao gozar do outro, o outro jamais gozará sua vontade. No gozo, pois, há oferta e império da vontade. Cada qual, a um tempo próprio, se dará por objeto de gozo e cumprirá a soberania do gozar. No gozo inexistem cortesias, só saciedade. Amor carnal: dar-se em uso e usar abusadamente.

Há um indescritível no amor. Gresiela Nunes da Rosa: “Há um não sei. O amor perdura enquanto não descrevo o que sinto, enquanto não sei das suas razões. Quando me sei na relação, quando delineio o outro, já não há amor”. “Hoje eudiria que cogitar que sabe do outro é mais perder o direito de amar e ser amado. Quem é que sabe? Tanto o amor quanto o desejo carecem da alteridade e aí, me parece, tem, necessariamente, um impossível de saber”.

Tenho sede de saber o outro. Mais e mais. Oponho-me a demarcações e corro riscos. Creio que compreendo Gresiela, todavia pelo inverso do dito: morre o amor se resumido à vivência das coisas dadas. Se me basta o que sei e já não quero saber mais nada, talvez não aconteça que eu saiba a tal ponto que não tenha mais que saber; quiçá, apenas, já não me interesse. O outro já não me entretém o querer, já não me açula desejo.

Amor por inércia: muita gente, embora esgotadas as vontades, permanece. Namora de caso acabado. Pode ser pelas boas lembranças, que sempre as há, pode ser por perdurar um amor amigo que nos dê escora para os medos da vida. Uma pessoa ao lado sempre fará grande bem. Mas não é disso que se trata. Seja porque a relação está demais desvendada, seja porque já não interessa desvendar a relação, os ímpetos de sedução estarão arrefecidos.

Desilusão. Se uma das partes pretender partir para a vida, desmancha tudo, reacomoda as circunstâncias, termina a relação. Melhor que seja vontade de ambas as “carametades”, assim se podem despedir com alegria, até com alguma saudade antecipada. Quando a coisa está azeda, dois caminhos: ou se desvencilham reciprocamente com elegância, ou acaba em demanda judicial com passagem pela delegacia especializada em violência doméstica.

Há, porém, casos que seguem por válidos ou mesquinhos interesses; outros persistem porque os casais se habituaram a estar casados. Alguns se convertem em belas amizades. Às vezes, questão prática, os corpos se emprestam ao sexo: não haverá encanto, mas haverá alívio após o sexo de ocasião, alívio da vontade, mas, já, alívio no afastamento. Eu diria que é quase uma tarefa: cumpre-se-a; realizada, as partes regressam ao cotidiano.

Outro tipo de amor: companhia de conversa; convívio de respeito. Convivência respeitosa, sem arrebatamento. Não estão “felizes para sempre”, não há sexo com gosto nem com “criatividade”. Algum acalanto é um beijo na testa. Inocentes o nomeiam “amor verdadeiro”. Nada. Não tem paixão. O amor mesmo, só “porque ela era ela e eu era eu” (Chico), o amor indefinito, perdeu seu crisol, está acabado. Nada disso comporta o amor sem definição.