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Análise: grande objetivo de terrorismo do Hamas é destruir sensação de segurança em Israel

Para especialista, grupo tenta minar o mito da invencibilidade israelense ao levar o conflito para dentro do território judeu; pesquisadores apontam que ofensiva de sábado pode ter objetivo político por trás, como reforçar imagem do Hamas com palestinos

Agência O Globo - 13/10/2023
Análise: grande objetivo de terrorismo do Hamas é destruir sensação de segurança em Israel

No dia que os israelenses acordaram horrorizados ao descobrir que grupos terroristas palestinos se infiltraram no país, estavam disparando contra soldados e civis, e levando reféns para Gaza, o comandante da ala militar do Hamas, Mohammad Deif, divulgou uma rara mensagem abençoando o ataque.

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Falando de um local secreto, Deif descreveu a operação como uma explosão de raiva contra o tratamento dado por Israel aos palestinos e disse às suas forças que este era o primeiro passo para a destruição do Estado judeu.

"Combatentes justos, este é o vosso dia para enterrar este inimigo criminoso. O tempo deles acabou. Matem-nos onde quer que os encontrem", afirmou numa mensagem de áudio publicada nas redes sociais. "Removam esta imundície da vossa terra e dos vossos lugares sagrados. Lutem e os anjos lutarão convosco".

As queixas crescentes alimentaram a decisão do Hamas de atacar, mas a natureza da ofensiva foi moldada por uma profunda sede de vingança construída ao longo de décadas de conflito — um desejo de ver Israel sangrar.

O Hamas concretizou esse desejo no sábado, chocando o mundo ao trazer a luta para dentro das comunidades israelenses e destruindo a ideia de que Israel poderia manter o seu conflito com os palestinos em outro lugar.

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— O que o Hamas está fazendo é tentar virar a mesa de novo para os israelenses, dizendo que não se pode esquecer a questão da Palestina e que eles podem minar o mito da invencibilidade israelense — disse Tareq Baconi, autor de um livro sobre a atuação do Hamas na Faixa de Gaza. — Isso por si só é uma enorme transformação no imaginário palestino e penso que ainda não conseguimos ver ou compreender as suas implicações.

Há mais de uma década que o conflito Israel x Hamas tem se desencadeando com frequência em episódios de extrema violência em Gaza, mas a escala do ataque do Hamas e a captura de cerca de 150 israelenses aumentaram significativamente os riscos para ambas as partes.

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, prometeu destruir o grupo terrorista e as forças israelenses estão concentrando-se na fronteira de Gaza para uma potencial invasão terrestre. Os líderes do Hamas prometeram continuar lutando e apelaram a outras forças anti-sionistas para se juntarem a eles, levantando a ameaça de uma guerra regional.

Civis como custo

Quem paga o alto preço em Gaza são os civis, os mais vulneráveis, que se encontram entre os mais de 1.400 palestinos mortos em ataques aéreos israelenses à região. Se os líderes do Hamas consideraram o custo do ataque para os civis de Gaza, isso claramente não impediu a sua decisão de avançar.

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— Isso mostra que este tipo de grupo ou movimento tem objetivos políticos que perseguem e que o custo humano é uma consideração secundária — explicou a professora assistente de ciência política na Universidade de Richmond, Dana El Kurd.

Para decifrar as motivações do Hamas é necessário compreender como o grupo se enxerga na história da Palestina. O Hamas foi fundado no final dos anos 1980, durante a primeira Intifada, ou revolta, palestina contra Israel, como um grupo islamista dedicado a destruir o Estado judeu e a substituí-lo por um Estado islâmico.

Embora os seus líderes tenham, mais recentemente, admitido a possibilidade de uma solução de dois Estados, o fim teórico das décadas de esforços voltadas para a paz no Médio Oriente, nunca procurou negociar com Israel, ao contrário de outras facções palestinas. Em vez disso, considera ilegítima a existência de Israel, descrevendo o Estado judeu como um projeto colonial e a si próprio como um movimento anti-colonial.

O Hamas foi alvo de uma condenação internacional generalizada durante a segunda revolta palestina, que teve início em 2000, após ter lançado bombas suicidas em zonas civis. Israel, os Estados Unidos e muitos outros países, como Canadá, Egito, Japão e o bloco da União Europeia, o consideram uma organização terrorista.

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Desde 2007, o Hamas governa a Faixa de Gaza e Israel impõe um bloqueio rigoroso ao território, muitas vezes em conjunto com o Egito.

Principal responsável pelo grupo, o chefe do gabinete político do Movimento de Resistência Islâmica Hamas, Ismail Haniyeh, está sediado no Catar. Outros altos funcionários residem em Beirute, onde mantêm laços estreitos com o Hezbollah, o grupo militante libanês que também está empenhado na destruição de Israel.

Para evitar serem assassinados por Israel, os líderes do Hamas em Gaza raramente aparecem em público e acredita-se que se deslocam pelo território em túneis que ligam bunkers subterrâneos. Muitos deles têm uma má relação com o Estado judeu

O líder do Hamas em Gaza, Yahya Sinwar, passou duas décadas na prisão por ter matado soldados israelenses. Foi libertado em 2011 numa troca de prisioneiros e regressou a Gaza. Sinwar foi eleito como novo chefe do Hamas na Faixa de Gaza em 2017. Além de ser um dos fundadores do braço armado do grupo, é considerado um terrorista pelos Estados Unidos.

Deif, o chefe da ala militar do Hamas, não é visto publicamente há anos. Israel tentou assassiná-lo várias vezes, possivelmente mutilando-o ou cegando-o de um olho. O Estado judeu bombardeou a sua casa em 2014, matando sua mulher e seu filho, um bebê.

Nesta terça-feira, autoridades do Hamas afirmaram que ataques aéreos israelenses atingiram a casa da família do chefe da ala militar do grupo. À Associated Press, Bassem Naim, alto funcionário do Hamas, confirmou que o bombardeio matou pai, irmão e pelo menos dois outros parentes de Deif na cidade de Khan Younis, ao sul da Faixa de Gaza. O paradeiro do líder terrorista é desconhecido.

'Temos nada a perder'

O compromisso do Hamas com a luta armada distingue-o da Autoridade Nacional Palestina (ANP), que foi criada durante o processo de paz como uma espécie de governo palestino em espera e que agora tem um controle limitado sobre partes da Cisjordânia.

Os líderes do grupo terrorista argumentam que o processo de paz falhou aos palestinos, restando a luta armada, ou a resistência, como única opção. Nos últimos meses, eles têm enfrentado um descontentamento crescente com o seu fracasso em melhorar as condições de vida em Gaza, onde a maioria dos residentes está presa, a pobreza é abundante e os cortes de energia são comuns.

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O ataque de sábado visava provavelmente desviar as atenções desse fato, reforçando simultaneamente as credenciais de resistência do Hamas junto dos palestinos.

— A Autoridade Nacional Palestina (ANP) abandonou completamente a ideia de representar os palestinos em qualquer tipo de resistência, violenta ou não violenta, então agora o Hamas assumiu esse papel — afirmou El Kurd.

A professora assistente de ciências políticas acrescentou ainda que, com um ataque tão ousado, o Hamas procurou provar aos palestinos que é "o baluarte da resistência".

Muitos habitantes de Gaza não abraçam completamente a ideologia do Hamas, mas existe um amplo apoio à sua luta contra Israel. A maior parte dos 2 milhões de habitantes de Gaza são refugiados que eram ou são descendentes de palestinos que fugiram ou foram expulsos do que é hoje Israel durante a guerra que rodeou a sua criação, em 1948.

Alguns habitantes de Gaza têm as suas raízes em aldeias que outrora se situavam onde ocorreu a incursão de sábado.

Nos dias que se seguiram à ofensiva-relâmpago, os líderes do Hamas elogiaram o ataque como um êxito e prometeram matar prisioneiros israelenses se Israel bombardeasse civis em Gaza sem aviso prévio. Mas, por outro lado, fizeram poucas exigências específicas, sugerindo que mais conflitos estariam por vir.

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Israel tem bombardeado repetidamente Gaza ao longo dos anos, matando um grande número de membros do Hamas e de civis, mas sem degradar significativamente o grupo.

Segundo o Ministério da Saúde de Gaza informou nesta quinta-feira que 1.417 palestinos foram mortos e mais de 6.200 ficaram feridos desde sábado — 1,5 mil eram menores de 18 anos. A divisão entre combatentes e civis não era clara. É muito provável que este número aumente significativamente à medida que Israel bombardeie o território e, possivelmente, inicie uma incursão terrestre.

Ainda não está claro se o elevado custo para os civis irá afetar o Hamas. Mesmo quando o grupo terrorista ataca primeiro, os habitantes de Gaza tendem a culpar Israel pela sua miséria, e muitos já passaram por tantas guerras que o fatalismo prevalece.

— Pelo que ouço dos habitantes de Gaza, esta é uma guerra muito repetitiva — afirmou Imad Alsoos, um pesquisador de Gaza no Instituto Max Planck de Antropologia Social, na Alemanha.

Alsoos contou que a frase que costuma ouvir de amigos e familiares é: "Não temos nada a perder".