Internacional

Guerra na Ucrânia e sentimento contra imigrantes entram na campanha eleitoral polonesa

Mesmo com quase um milhão de ucranianos vivendo na Polônia, governo muda o tom sobre a ajuda militar ao país vizinho foram questionadas pela oposição, de olho em eleitores à direita

Agência O Globo - 02/10/2023
Guerra na Ucrânia e sentimento contra imigrantes entram na campanha eleitoral polonesa

Quase um milhão de ucranianos vivem hoje na Polônia, de acordo com o último relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), lançado em setembro, que mostra que a Polônia é o segundo país que mais recebeu ucranianos com a guerra, atrás apenas da Alemanha, não só pela proximidade geográfica, mas também pelas raízes culturais e históricas que os dois países compartilham. É, de longe, a maior população de imigrantes presentes no país, com uma população de 41 milhões de habitantes.

Contexto: Forte aliada na guerra contra a Rússia, Polônia anuncia que não vai mais fornecer armas à Ucrânia

80 anos após o Holocausto: Judeus redescobrem suas origens (e seu orgulho) na Polônia

Nas ruas das principais cidades polonesas, é comum ver bandeiras ucranianas em lojas, instituições privadas e nas janelas das casas, assim como atos de apoio em praças públicas. No centro da cidade velha de Cracóvia, por exemplo, voluntários poloneses pedem diariamente doações para os refugiados ucranianos, e lá se reúnem para entoar o hino da Ucrânia. O maior jornal privado do país, o Gazeta Wyborcza, agora tem uma seção apenas com notícias escritas em ucraniano, e há vários canais pagos de TV ucranianos no país — o que não era comum antes da guerra.

Por isso, às vésperas das eleições legislativas polonesas, no próximo dia 15, é inevitável que o país e a guerra na Ucrânia estejam presentes com força na campanha. Desde o início da invasão russa, Varsóvia desempenhou um papel fundamental no lobby junto a outros membros da União Europeia e da Otan para o envio de mais armas à Ucrânia. Mas, há pouco mais de uma semana, o premier polonês, Mateusz Morawiecki — que vinha sendo um dos apoiadores mais resolutos de Kiev no conflito contra Moscou — anunciou que interromperá o fornecimento de ajuda militar à Ucrânia para armar seu próprio Exército.

Os Ulma: Beatificação de família morta por esconder judeus na Polônia reforça nacionalismo e religiosidade às vésperas das eleições legislativas

A suspensão acontece após protesto de Kiev contra a decisão de Varsóvia de proibir a venda de grãos ucranianos, que passaram a inundar a Polônia após o rompimento pela Rússia do acordo de exportação de cereais através do Mar Negro. Os agricultores e a população rural do país representam um importante eleitorado para a direita polonesa. E eles agora temem que seus meios de subsistência estejam ameaçados pelos grãos e outros produtos agrícolas baratos vindos da Ucrânia.

— O PiS reconhece corretamente os sentimentos dos poloneses em geral, que foram entusiasticamente pró-ucranianos durante muito tempo e agora estão exaustos com a guerra, com a inflação e os custos de vida — afirma ao GLOBO o cientista político polonês Pawel Ukielski, vice-diretor do Museu do Levante de Varsóvia, referindo-se ao ultranacionalista Partido Lei e Justiça. — Eles também sentem que a Ucrânia não valoriza o apoio polonês tanto quanto deveria. Com as declarações, o primeiro-ministro, o presidente e o líder do PiS jogam, portanto, uma cartada política.

'Circo antiucraniano"

Na semana passada, o presidente polonês, Andrzej Duda, chegou a comparar a Ucrânia a um "homem que está se afogando". Dias depois, no entanto, suavizou as declarações do premier, argumentando que a ameaça de parar de fornecer armas a Kiev foi "interpretada da pior maneira possível".

— Uma pessoa que se afoga é extremamente perigosa, porque pode puxá-lo para as profundezas. Ela pode simplesmente afogar o salvador — afirmou Duda.

Marta Prochwicz-Jazowska, analista do escritório de Varsóvia do centro de estudos German Marshall Fund, afirma ainda que as declarações do premier na TV pretendem tranquilizar os eleitores de que o governo da Direita Unida (coligação de partidos de direita liderados pelo PiS) investirá na modernização do Exército polonês.

Até agora, o governo destinou cerca de 40% do seu equipamento militar à Ucrânia, mas o ritmo diminuiu desde abril. Depois de perder as suas próprias capacidades, o país iniciou rapidamente compras em grande escala para reabastecer e modernizar as Forças Armadas polonesas. Em 2023, o orçamento destinado à modernização foi de US$ 33 bilhões (R$ 165 bi).

— As declarações do premier foram dirigidas a um público interno que teme a Rússia. O slogan da campanha do PiS é “Futuro Seguro para a Polônia”, e a intenção do primeiro-ministro era assegurar aos eleitores que a Polônia está segura e que a sua segurança é uma prioridade — afirma Marta Prochwicz-Jazowska.

O líder da oposição liberal polonesa, o ex-primeiro-ministro Donald Tusk, descreveu o novo conflito retórico entre os dois países como um "escândalo moral e geopolítico". Num comício na cidade de Kalisz, Tusk falou de um "desprezível circo antiucraniano" que está sendo encenado pelo PiS.

— É um escândalo moral e geopolítico apunhalar politicamente a Ucrânia pelas costas quando decidem lutar na frente ucraniana, só porque será rentável para a sua campanha — disse Tusk, cujo partido, Coligação Cívica (KO, de centro), aparece em segundo nas pesquisas.

Eleições: Polônia desperta críticas internacionais após aprovar lei contra 'influência russa' que ameaça inabilitar líder da oposição

Segurança para o próprio país

Diferentemente de outros momentos da História do país, não há hoje um sentimento antiucraniano generalizado na Polônia — longe disso. De acordo com uma sondagem do German Marshall Fund, mais de 70% dos poloneses são a favor de que a Ucrânia se torne membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) — uma das justificativas do presidente russo, Vladimir Putin, para iniciar a guerra — e de que o governo polonês dê uma ajuda financeira para a reconstrução do país. O número é um dos mais altos da Europa.

— Os poloneses acolheram os ucranianos nas suas próprias casas, e os ucranianos que permaneceram na Polônia [muitos regressaram à Ucrânia, e outros foram para Alemanha] estão bem integrados à sociedade. Os poloneses também estão conscientes de que a sua economia está indo bem graças à força de trabalho ucraniana — afirma a analista do German Marshall Fund.

A sociedade polonesa em geral também entende que defender a Ucrânia — e os ucranianos — é uma questão de segurança para o próprio país. A ajuda militar, financeira e humanitária dada ao país vizinho totaliza cerca de 4,27 bilhões de euros (R$ 22 bilhões), de acordo com um levantamento do Ukraine Support Tracker, que quantifica a ajuda prometida pelos governos a Kiev.

— Há um consenso geral que os ucranianos lutam também pela nossa segurança, por isso a sociedade como um todo apoia os ucranianos na guerra — concorda o historiador polonês. — Os dois lados políticos, governo e oposição, concordam com os gastos militares, ou seja, o nível de militarização não é questionado.

Direitos: Polônia regride em direitos LGBTQIA+, mas pressão interna começa a surtir efeitos

A exceção é a legenda Confederação, partido nacionalista ainda mais à direita que o PiS, que usa abertamente slogans antiucranianos em sua campanha eleitoral, e defende, de maneira mais sutil, a decisão de Moscou de invadir o país. As últimas pesquisas mostram o PiS à frente, com apoio de 39% dos eleitores. A Coligação Cívica, de Tusk, vem em segundo, com 31%. A Confederação tem, em média, 10% dos votos.

Justamente por isso, alguns analistas acreditam que, com a aproximação da eleição, o PiS possa estar usando o sentimento anti-Ucrânia para fazer campanha para sua própria base eleitoral, usando os agricultores poloneses para angariar votos do Confederação.

— O comentário também pode ter tido como objetivo alcançar os eleitores da extrema direita que se afastaram do PiS a favor da Confederação, e reter os votos dos agricultores — diz Prochwicz-Jazowska.

Referendo sobre imigração

Apesar do elevado número de ucranianos no país, nem todos os refugiados são bem-vindos. A discussão em torno do tema, aliás, mudou dramaticamente nos últimos três anos no país. Antes da guerra, o PiS explorou a crise dos refugiados para promover sua “propaganda xenófoba” — que pintava migrantes não europeus, especialmente do Oriente Médio e da África, como “terroristas”.

Entrevista: "Governo polonês explora crise migratória em benefício próprio", afirma especialista da Universidade de Varsóvia

Em 2021, o governo iniciou a construção de uma cerca de metal em sua fronteira com Bielorrússia, aliada de Moscou, após um fluxo de migrantes sem precedentes vindo do país. O Centro de Análise de Propaganda e Desinformação, vinculado ao Ministério de Negócios Estrangeiros da Polônia, denuncia uma "guerra híbrida" travada pela Bielorrússia. Segundo o centro, criado em 2019, o governo bielorrusso promoveu campanhas de desinformação, oferecendo uma rota para a União Europeia através da Bielorrússia — o que levou centenas de migrantes à fronteira.

— Vemos a Rússia como uma ameaça. E a desinformação, além dos ataques cibernéticos diários, são uma ameaça real à nossa segurança — disse uma porta-voz do centro, sob condição de anonimato. — Há uma guerra híbrida em curso com o objetivo de desestabilizar nosso país e influenciar as eleições. Hoje, 80% dos esforços do ministério têm a Rússia como alvo.

No fim do ano passado, o governo polonês voltou a reforçar a fronteira, desta vez com a construção de uma cerca ao longo na divisa com o território russo de Kaliningrado. A barreira temporária ao longo da fronteira de 210km conta com uma cerca de arame de 2,5 metros de altura e três metros de profundidade, além de equipamentos eletrônicos.

No dia das eleições legislativas, um referendo também irá consultar a população sobre o tema: “Você apoia a admissão de milhares de imigrantes ilegais do Oriente Médio e da África, de acordo com o mecanismo de relocalização forçada imposto pela burocracia europeia?”, diz a pergunta na cédula. Nos panfletos e peças de propagandas do governo sobre o referendo, a resposta "sim" já aparecia marcada.

* A repórter viajou a convite do Memorial do Holocausto de São Paulo, com apoio do governo da Polônia