Internacional

Menos eletricidade, menos leite e menos carne: crise energética e de alimentos piora em Cuba

Ilha sofrerá novos apagões e enfrentará colapso no transporte por falta de combustível; governo reconhece a gravidade da situação, mas atribui problemas ao bloqueio econômico

Agência O Globo - 29/09/2023
Menos eletricidade, menos leite e menos carne: crise energética e de alimentos piora em Cuba

A crise que os cubanos sofrem há anos enfrenta uma nova reviravolta, e as próprias autoridades cubanas admitiram a gravidade da situação. Os ministros da Economia e de Minas e Energia anunciaram na TV estatal, durante o programa Mesa Redonda, que o governo não tem dinheiro suficiente para comprar alimentos fora do país e que o cenário, incluindo o abastecimento energético, poderá se agravar nas próximas semanas. Em tom grave, confirmaram, basicamente, que tudo o que os habitantes da ilha já tinham em pequenas quantidades ficará ainda mais escasso: menos leite, menos café, menos carne de porco, menos transportes públicos e menos horas de eletricidade.

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— A economia está numa situação complexa — disse o vice-primeiro-ministro e ministro da Economia, Alejandro Gil Fernández, que durante o programa transmitido na quarta-feira não apresentou números, mas admitiu os atrasos na entrega de alimentos racionados mensalmente a cada casa, a falta de leite para as crianças e a falta de pão.

Já o ministro de Energia e Minas, Vicente de la O Levy, anunciou que haverá apagões durante o mês de outubro devido a um défice de até 700 megawatts, o que equivale a 20% do consumo nacional, e um agravamento dos transportes devido à falta de combustível.

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O ministro explicou que das 120 mil a 130 mil toneladas de diesel que o país necessita por mês, mil toneladas serão utilizadas para a produção de eletricidade.

— Temos fornecedores e países que não conseguiram cumprir e que violaram contratos. Tivemos que sair para comprar o combustível do dia a dia — disse ele. — Estamos em uma situação difícil, mas vamos nos levantar.

Depois de reconhecer a profunda estagnação em que se encontra a economia cubana e de atribuir a situação ao embargo econômico dos Estados Unidos e ao aumento do preço dos alimentos no mercado internacional, os ministros admitiram que o país precisa de se concentrar na produção nacional.

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— Depender cada vez mais daquilo que somos capazes de produzir — disse Fernández, que também pediu ao povo cubano que mantenha a confiança na revolução. — Sabemos que a vida é difícil. Mas acreditem: a única saída é a revolução e o socialismo.

Nas redes sociais, muitos cubanos não viram nada de novo nas últimas declarações dos ministros. ]

— É mais do mesmo — disse Dani González ao El País. — O que eu sei é que nenhum líder passa pelo que nós, o povo, passamos. Me sinto decepcionado com tudo o que nos prometeram e não cumpriram.

Antes do anúncio de quarta-feira, já haviam sido reveladas medidas de contingência adotadas em algumas províncias do país, entre as quais a diminuição do horário de eletricidade nas residências cubanas, o reajuste do horário de trabalho e do trabalho remoto, além da redução do uso de iluminação e a reestruturação horários escolares.

— Não creio que esta seja uma situação excepcional — disse o economista cubano Mauricio de Miranda. — Há muito tempo que estamos numa opção quase zero. A economia cubana vive uma crise estrutural que já dura mais de três décadas, ou seja, a economia cubana não saiu dessa crise.

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O governo tentou, sem sucesso, reavivar a economia cubana nos últimos anos com uma série de medidas, entre as quais se destaca a chamada Tarefa de Ordenamento, que incluía a unificação monetária; a abertura de lojas de moeda estrangeira, a abertura a investidores estrangeiros em algumas sociedades de economia mista; e o estabelecimento de pequenas e médias empresas (MPME) ou a realização de operações financeiras.

No entanto, o povo cubano tem sofrido uma carência que alguns só comparam ao chamado Período Especial, após a extinção da ajuda da União Soviética. Nos últimos dois anos de crise, mais de 300 mil cubanos deixaram o país, o maior êxodo da história do castrismo.

A situação de escassez em que o país já estava imerso agravou-se com a crise sanitária devido à covid-19 e a queda drástica do setor mais importante da economia: o turismo. No fim de julho, o presidente Miguel Díaz-Canel disse que Cuba não alcançará os 3,5 milhões de turistas internacionais que aspirava receber este ano.

No entanto, o país continua empenhado em destinar os seus poucos recursos a este setor, algo que os especialistas consideram um erro.

— Alocar a maior parte dos recursos ao turismo tem sido um erro grave, porque com a escassez de recursos financeiros que a economia cubana tem, com a capacidade de investimento muito limitada, foram negligenciados setores essenciais, como a agricultura e o setor industrial — afirma Miranda.

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O cenário de crise que nos últimos anos se traduziu num crescente descontentamento social. Alimentos que antes eram comuns na mesa, como a carne de porco, hoje são escassos. Chovem reclamações sobre a falta de combustível, até mesmo para carros funerários. Os altos preços dos produtos são incompatíveis com os baixos salários.

O Observatório Cubano dos Direitos Humanos (OACDH) mostrou, em setembro do ano passado, que a pobreza extrema no país aumentou drasticamente em um ano. Segundo ele, 88% dos cubanos vivem com menos de US$ 1,9 dólar por dia e 48% deixaram de comer por falta de dinheiro para comprar alimentos.

Segundo o economista, no curto prazo a solução poderia passar por permitir a promoção da produção do setor privado.

— É necessário um debate nacional sobre o futuro do país — afirma Miranda. — Devemos permitir que todos que têm recursos para iniciar um negócio o façam. E assim a produção cresce. Mas o problema fundamental é que o governo não quer abandonar o modelo em que é ele cuida de toda a economia, que autoriza, que permite, que toma decisões. Isso é um absurdo, e está provado que um modelo centralizado desta forma falha.