Internacional

Aliança militar na África reforça papel de armas brasileiras como instrumento geopolítico

Envio de Super Tucanos por Mali e Burkina Faso ao Níger e acordo trilateral entre os países põem em evidência venda de armamentos para continente em ampliação de influência

Agência O Globo - 29/09/2023
Aliança militar na África reforça papel de armas brasileiras como instrumento geopolítico

Um som conhecido nos céus do Brasil cortou a parte central do Sahel, a região subsaariana no Oeste da África, em meados do mês passado. Logo após o Exército do Níger derrubar o presidente democraticamente eleito Mohamed Bazoum sob o protesto dos países vizinhos, que pressionaram pelo restabelecimento da ordem constitucional — incluindo a autorização para uma operação militar que nunca saiu do papel — Burkina Faso e Mali, outras duas nações que passaram por golpes recentes, enviaram parte da elite de suas forças aéreas para defender o novo governo nigerino de intervenções estrangeiras: aviões Super Tucano, de fabricação brasileira.

Contexto: Golpe no Níger confirma aumento da influência russa em ex-colônias francesas

'Cinturão golpista': com Níger, África subsaariana sofre seis golpes de Estado em três anos

Armas, munições e equipamentos bélicos de fabricação nacional já estavam em uso na complexa região do Sahel, assolada por grupos terroristas como Boko Haram, al-Qaeda e Estado Islâmico. A onda de golpes militares dos últimos três anos e a recente aproximação entre os novos governos puseram os produtos brasileiros, contudo, na vanguarda do arsenal da Aliança de Estados do Sahel (AES), um tratado de defesa coletiva anunciado pelas juntas militares de Burkina Faso, Mali e Níger há duas semanas. E de quebra reforçaram o papel da indústria bélica nacional e da cooperação em temas de Defesa como ferramentas nas relações geopolíticas do Brasil com a África.

De acordo com especialistas ouvidos pelo GLOBO, agendas militares e atividades comerciais nos setores mantêm as trocas constantes entre os dois lados do Atlântico. Segundo o professor Danilo Marcondes, da Escola Superior de Guerra, o Brasil investe há décadas em nichos de mercado na África e em cooperação Sul-Sul na área de Defesa, como uma estratégia mais abrangente para expandir a zona de influência brasileira.

— O Brasil é um país do Sul Global, mas que tem uma indústria de defesa bem desenvolvida desde os anos 1970 e 80, quando, ainda durante a Guerra Fria, exportava esses produtos principalmente para países africanos e o Oriente Médio — explica. — Devido à dificuldade de competir com EUA, Europa e Rússia, o Brasil investiu em nichos de mercado, produzindo componentes de manutenção mais simples, mas que atendem às necessidades de treinamento e patrulha desses países, muitos deles recém-independentes.

Entenda: Níger era 'último bastião ocidental' na África subsaariana, agora sob influência russa, diz especialista

Fornecedor de armas leves

Apesar de Mali, Burkina Faso e Níger terem todos PIB inferior ao do Haiti, o país mais pobre do Hemisfério Ocidental, as nações que integram a nova iniciativa de defesa possuem um arsenal “cosmopolita”, mas longe da tecnologia e da modernidade vistas em outros campos de batalha, como na Ucrânia. O Balanço Militar do Instituto Internacional para Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês), que avalia anualmente as capacidades globais e da economia da defesa pelo mundo, indica que as aeronaves brasileiras produzidas pela Embraer estão entre os principais equipamentos bélicos regionais atuais. No caso de Burkina Faso, as unidades são dos modelos EMB-314, enquanto o Mali dispõe da versão A-29.

Em um cenário no qual cinco grandes players (EUA, Rússia, França, Alemanha e China) representam cerca de 75% do mercado global de armamentos, o Brasil conseguiu se inserir principalmente como um fornecedor de armas leves — embora opções mais complexas, como os aviões Super Tucano e os Sistemas de Mísseis e Foguetes Astros também tenham sua fatia de mercado.

— Em 2021, o Brasil vendeu U$ 1,65 bilhão de dólares (R$ 8,3 bilhões no câmbio atual), o que não é pouco. É claro, é um player menor em comparação aos maiores players, mas se contarmos apenas armas leves, somos o 3º fornecedor mundial — afirmou Leonardo Trevisan, professor de Relações Internacionais da ESPM. — O Super Tucano, hoje, talvez seja o artigo militar brasileiro mais cobiçado no exterior, porque ele é o avião ideal para ataque em solo.

Leia também: Rússia diz que intervenção estrangeira não resolverá crise no Níger após fracasso de negociação africana

De acordo com Trevisan, o país está especialmente bem-posicionado para compradores menores, como países da África e do Sudeste Asiático, que enfrentam “cenários estáticos imediatos”, como é o caso dessas nações que passaram por golpes recentes.

No terreno, a aliança dos três países africanos também conta com blindados E-99 Cascavel, modelo concebido pela extinta Engesa, que fazem parte da frota terrestre burquinense em operação, segundo o mesmo relatório do IISS. Além disso, em 2022, os países somados compraram US$ 683 mil (R$ 3,45 milhões) em armas e munições do Brasil — mais do que o negociado com a Colômbia, segundo os dados sobre comércio exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.

Entre janeiro e julho deste ano, Burkina Faso comprou outros US$ 398 mil (R$ 2,011 milhões) em armas e munições, apesar de já suspenso de organizações internacionais como a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao), em represália pelos sucessivos golpes militares no ano anterior.

Veja também: Presença de Prigojin em bastidores de cúpula evidencia papel do Grupo Wagner na política de Putin para África

Ameaças internas e externas

Quando a Aliança de Estados do Sahel (AES) foi formalizada no dia 16, com a assinatura da Carta Liptako-Gourma (referência à região fronteiriça entre os três países), o chefe da junta militar de Mali, Assimi Goita, descreveu a aliança como “uma arquitetura de defesa coletiva e assistência mútua”. O chanceler do país acrescentou que a prioridade seria a luta contra o terrorismo — embora analistas vejam como um alerta a qualquer tentativa de intervenção estrangeira.

— Neste caso, o combate aos jihadistas serviu como uma desculpa ideal para intensificar a oposição à influência do Ocidente e aos Estados africanos que autorizaram uma intervenção armada para evitar esse tipo de golpe — explicou Trevisan.

No dia 10 de agosto, 15 dias após o golpe no Níger, a Cedeao, organização internacional regional integrada ao sistema das Nações Unidas, determinou, em uma reunião de cúpula, o envio de uma força de intervenção para restabelecer a ordem constitucional no Níger. Oito dias depois, os Super Tucanos de Burkina Faso e Mali aterrissavam em Niamei, capital do Níger.

Apesar da autorização para reunir tropas e invadir o país vizinho, nenhum movimento aconteceu na prática — para Trevisan, em razão da memória não tão distante de conflitos passados.

— As nações africanas têm uma memória dessas intervenções. Todas elas seguem um mesmo processo, em que se sabe como elas começam, mas nunca como terminam. O aviso da nova aliança tem como objetivo afastar qualquer ameaça presente de uma intervenção militar de países maiores da África, como a Nigéria [parte da Cedeao] e a África do Sul — disse.

Missão naval brasileira na África

Na opinião do professor João Bosco Monte, criador e presidente do Brazil Africa Institute, embora seja necessário que os problemas democráticos em países como o Níger sejam solucionados por seus próprios cidadãos, a pressão da comunidade internacional é natural, principalmente para evitar que qualquer conclusão negativa sobre o processo de um país contamine os demais.

— A Cedeao, que reúne países importantes como a Nigéria, chamou para si a responsabilidade de resolver o que se passa no Níger. Houve um movimento das corporações para atuar militarmente e uma sinalização foi dada: vocês não podem fazer o que querem e nos prejudicar — disse Monte. — Esse tipo de condenação mostra um amadurecimento das instituições e dos quadros africanos, e demonstra que a situação de um país não pode onerar a África em geral.

Como parte dos esforços de aproximação com a África, a Marinha do Brasil enviou, no início de agosto, uma fragata, um destacamento de mergulhadores e um helicóptero utilitário para participar da 3ª edição da Operação Guinex, no Golfo da Guiné e na qual estão previstos, até 14 de outubro, exercícios conjuntos com as marinhas e guardas costeiras de países como Cabo Verde, Camarões, Costa do Marfim, Nigéria, São Tomé e Príncipe e Senegal, além da participação das marinhas de Espanha, EUA e Reino Unido.

Para este ano ainda está prevista a Operação Grand African Nemo 2023, de 13 de setembro a 10 de novembro, que será conduzida pela Marinha dos EUA no Golfo da Guiné, com o objetivo de treinar as marinhas dos países da África Ocidental e dos demais participantes por meio de adestramentos e exercícios de combate aos ilícitos marítimos.

Histórico de parceria

A cooperação Brasil-África em defesa e segurança remonta ao final dos anos 1990, quando o governo federal assinou um acordo histórico para desenvolvimento da Marinha da Namíbia, um país da África Meridional que acabara de conquistar sua independência, após 23 anos de conflitos territoriais entre a África do Sul e Angola.

— A Namíbia tinha acabado de se tornar independente e não tinha meios de proteger sua extensa costa depois de tanto tempo ocupada pelo regime de apartheid, então buscou no Brasil uma parceria. E a Marinha do Brasil identificou como importante essa interlocução com um país do outro lado do Atlântico — conta Marcondes.

A cooperação se deu em etapas. Primeiro, com o envio de aprendizes e oficiais da Namíbia para estudar na Escola Naval do Brasil e, a partir de 2004, com a constituição de fato da Marinha Namibiana. Bem-sucedida, a experiência foi replicada em Cabo Verde — cuja guarda costeira está sendo estruturada com apoio do Brasil, incluindo doações de embarcações e armamentos e treinamento — e em São Tomé e Príncipe, que também conta com o suporte de Portugal.

O Brasil participou e encabeçou uma série de outras iniciativas no campo militar na África, incluindo missões de paz da ONU. Diretamente com governos africanos, o país tem atualmente uma parceria estratégica para desenvolvimento conjunto de produtos de defesa com a África do Sul, parceiro de Brics, e acordos de cooperação estruturantes com a Guiné Bissau, visando a reforma do setor de segurança, segundo Marcondes.