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Asas à imaginação
Poucos nos suportamos em estado de solidão (ou solitude, palavra piegas para dizer a mesma coisa). Nos momentos em que estamos sós, nos angustiamos. Fazemos, muitas vezes, mais do que seria sensato ou digno, para nos desviar de um encontro forçado com nós mesmos. Não refiro viver isolado, o que é raro e seria contra a natureza humana. Falo de ocasiões em que não há ninguém ao nosso alcance, ou ninguém quer nos alcançar.
Quando tal acontece, nos debatemos por alguém a chamar, por um lugar aonde ir; ansiamos por uma batida na porta, um toque de telefone, uma mensagem. O ninguém mais é um vazio; o eu comigo mesmo é um tudo opressor. Desejamos o amparo do afeto alheio. Alçar-se acima do estado de angústia que acompanha o deparar-se consigo próprio é uma condição mental elevada, portanto, nada fácil de alcançar.
Explico-me: bastar-se não completa ninguém (aliás, mal nos amamos; mais desejamos ser amados); ser bastante é, contudo, condição necessária para o mais. O que nos dá sentido existencial são os outros; nosso sentido emocional é proporcionado pelas nossas relações afetivas. Então, é exato, eu não me basto enquanto ser-com-afeto-no-mundo. Como indivíduo, todavia, eu não devo dissolver minha personalidade nas circunstâncias.
Tampouco nas minhas relações afetivas hei de me anular. Devo, e devo sempre, preservar minha integridade (um mínimo eu), riscando fronteiras pessoais e nelas permanecendo, quando apropriado nelas permanecer. A demarcação ostensiva de limites me segregará, porém, posto um singelo e delicado traço e já estará claro que ali começo eu, ainda que o mundo e eu sempre nos confundiremos num nós social.
Desse eu-território-de-mim, contudo, há que ter um esforço de guarda, ou dele, em não sendo prazeroso, hei que me afastar: afastar-me de como estou, recompondo o meu eu território-de-mim. Se eu sou um território de mim mesmo, se eu-ser-emocionado sou o habitante desse território, tenho que cuidar dele, porque eu sou a minha primeira circunstância, ainda que não seja eu, e sim o mundo, a principal circunstância de mim.
Há quem não dê conta de encontrar-se, que precise escafeder-se de si. O bêbado, o drogado, o entorpecido por remédios, creio que, ao cabo, se estão anulando. Ficam ninguém: baladeiros por indigência de qualquer companhia, torcidas organizadas em torno de agressividade, pasteurizadas no barulho e na multidão. Referem-se enquanto bando; valem pouco, individualmente. Ficariam perdidos se houvesse silêncio, se devessem pensar.
Os que, à esquerda ou à direita, idolatram o “meu” político, formando grupos de tramas, mentiras, negacionismo e cancelamentos em redes sociais, conspiram contra a vida democrática, que necessita de persuasão e consensos mínimos. Os que esperam um “reino” em outra vida, no máximo, se tiverem boa sorte,
encontrarão um senhor autoritário, ao tempo mesmo em que se alienam de relações concretas com a sua vez na História.
No universo das mídias televisivas e redes sociais, os voyeurs dos reality shows onanizam-se bisbilhotando um espetáculo falso, vivendo fábulas substitutivas, no entusiasmo do que nunca vão ter ou ser. Muitos internautas, em suas viagens ou namoros pele web, não estão nos fatos nem estão em si; fazem-se avatares do que se imaginam ser e gozam fantasias com completos desconhecidos, outros avatares de outros lugares.
Mesmo intelectuais, supostamente mais advertidos dessas coisas todas, apartam-se da concretude da vida, insistindo em discursos prontos sobre todas as coisas, como se os fatos fossem redutíveis ao ditado de algum saber; são idealizações de dever ser a que nomeiam utopia: os de esquerda, desenham autoritariamente o futuro; os de direita, reescrevem o passado, saudosos do que só existiu em sua imaginação rancorosa.
A prazenteira (se soubermos nos compor com ela) e renunciada (nos matriculamos em fantasias) realidade: eu comigo, eu com alguém, eu e as pessoas, eu com as coisas, eu e o meu lugar. Eu e a História, eu e as circunstâncias que me são dadas, eu e as circunstâncias que me quero dar. Sei bem que a realidade é dialética; ademais, é invenção. Não é, contudo, um espetáculo de ficção vulgar que outros produzem para mim.
Almodóvar: “A ficção é um fato necessário da vida. Sem ficção, as pessoas ficariam loucas. Se não se produzissem mais histórias para as pessoas escaparem da realidade, haveria um caos no mundo. A ficção é necessária porque a vida das pessoas não é suficiente, a realidade é incompleta. Ainda mais em países pobres, como tantos que ainda existem. A ficção se torna para os desgraçados uma forma de sobreviver” (Época, 30nov09).
Concedo, Almodóvar está com a razão. Aliás, esta razão não é exatamente dele. Antes, Fernando Pessoa: “A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta”. A arte de cada qual vale igual. Não se furte, pois, à imaginação. Absorva-se em enredos seus para você mesmo, mas não consinta com qualquer narrativa; preceitue-se condição de artista. Aí, então, permita-se e se iluda. Mas, cuidado, sem muita ilusão.
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