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Beatificação de família morta por esconder judeus na Polônia reforça nacionalismo e religiosidade às vésperas das eleições legislativas

Pequena vila de Markova receberá dezenas de milhares de pessoas neste domingo para evento católico, que deve contar com presença do presidente Andrzej Duda

Agência O Globo - 10/09/2023
Beatificação de família morta por esconder judeus na Polônia reforça nacionalismo e religiosidade às vésperas das eleições legislativas

A pequena vila de Markova, a cerca de 200 km de Cracóvia, na Polônia, espera receber neste domingo até 35 mil pessoas para um evento esperado há pelo menos duas décadas por seus 4,2 mil habitantes: a beatificação da família Ulma, fuzilada por soldados alemães em 1944, por esconder no sótão da pequena casa onde viviam oito pessoas de duas famílias judias. O evento, com ares de superprodução, deve contar com a presença do presidente Andrzej Duda, dezenas de ministros e políticos e o alto clero do país, onde pelo menos 90% dos 37 milhões de habitantes se declaram católicos.

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A beatificação de toda uma família ao mesmo tempo — os pais Josef e Wictoria Ulma, seus seis filhos, entre 1 e 8 anos, e o sétimo, que estava na barriga de Wictoria, grávida de sete meses — é de fato algo inédito na Igreja Católica. Para beatificar o nascituro, por exemplo, o próprio Papa Francisco lhe concedeu um "batismo de sangue", para que bebê que não chegou a nascer fosse considerado digno do martírio. Mas o evento vai mais além do simbolismo religioso: acontece às vésperas das eleições legislativas, no próximo dia 15 de outubro, em um país altamente dividido e onde religião e política se misturam com frequência.

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Todo o processo religioso começou há 20 anos, em 2003, mas só em dezembro do ano passado o Papa Francisco anunciou a data da beatificação, que aconteceria em meio à campanha eleitoral do país.

— Não creio que a beatificação da família, que é amplamente vista como heróis na Polônia, independentemente das simpatias políticas, possa fornecer qualquer combustível especial para a campanha, que já é bastante brutal — disse ao GLOBO o cientista político polonês Paweł Ukielski, vice-diretor do Museu do Levante de Varsóvia. — Claro, provavelmente políticos participarão da cerimônia, mas não espero um uso político particularmente indevido do evento.

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O jornalista católico Janusz Poniewierski, ex-presidente do Clube Przymierze de Cristãos e Judeus, pensa o contrário.

— Temo que a beatificação se transforme num comício eleitoral e seja usada pelas autoridades para mostrar que o governo está nos planos de Deus — afirmou Poniewierski, em entrevista ao jornal local Polityka, que publicou uma longa reportagem sobre o tema em sua última edição. — Conhecendo as autoridades atuais, vejo um lobby na Igreja em relação à hora e local da beatificação.

Papel dos poloneses no Holocausto

A beatificação da família Ulma representa também uma oportunidade de fortalecer o heroísmo polaco durante a Segunda Guerra, uma narrativa que nos últimos anos vem sendo amplamente difundida pelo governo nacionalista do Lei e Justiça (PiS, na sigla em polonês).

Os Ulma tornaram-se patronos das ruas de toda a Polônia, e sua história está nos livros didáticos. O último ato aconteceu em julho deste ano, quando o Parlamento polonês aprovou, por amplo consenso, uma lei que designa o ano de 2024, 80 anos após a morte do casal e de seus filhos, como o Ano da Família Ulma.

Desde 2018, por iniciativa do próprio presidente, também é comemorado o Dia Nacional em Memória dos Poloneses que salvaram os Judeus sob a ocupação alemã, no dia 24 de março.

— A família Ulma tem um papel importante na consciência nacional polonesa. Eles personificam o heroísmo e sacrifício polonês durante a Segunda Guerra Mundial. Esta é uma parte importante da nossa identidade e os poloneses querem ser identificados com esses valores — ressaltou Ukielski.

Já o papel dos poloneses que denunciaram os judeus, não está nos museus. Os Ulma, por exemplo, foram denunciados por Wlodzimierz Les, um membro da Polícia Azul, única força armada polonesa autorizada pelos nazistas na Polônia ocupada. Oficialmente, entre as atribuições da Polícia Azul estavam tarefas como manter a ordem e regular o trânsito. Muitos, no entanto, informavam sobre os judeus escondidos para obter recompensas, ou chantageavam os próprios judeus ou os poloneses que os escondiam.

— Governos usam a história da guerra para reforçar seus pontos de vista. Tanto Israel, para justificar a criação de um Estado; quanto a Polônia para dizer que os poloneses não colaboraram com os alemães — diz Sebastian Rudol, vice-diretor do Centro Comunitário Judaico de Cracóvia. — Temos casos de poloneses que esconderam judeus e, na mesma família, um primo ou irmão matava outros. Nos últimos anos o foco tem sido apenas os casos de bons poloneses, mas não podemos contar apenas um lado da história

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A família Ulma também serviu como ferramenta política durante a resposta das autoridades poloneses à crise diplomática causada pela alteração da Lei do Instituto da Memória Nacional, em 2018. Promovida pelo Executivo, a legislação inicialmente condenava qualquer “insulto público à nação polonesa”, uma ofensiva contra a pesquisa independente sobre o Holocausto, com penas que previam três anos de prisão e multa, mas que acabou sendo atenuada após protestos internacionais e um conflito diplomático com Israel.

Apesar do recuo, no entanto, em 2021, dois renomados historiadores do Holocausto, Jan Grabowski, professor da Universidade de Ottawa e ganhador do prêmio Yad Vashem, e Barbara Engelking, diretora do Centro Polonês de Pesquisa do Holocausto, foram condenados pela lei a retificar um parágrafo de um ensaio de 1.600 páginas.

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No livro, os historiadores argumentam que o então prefeito da cidade de Malinovo Edward Malinowski, roubou uma mulher judia resgatada por ele e entregou aos nazistas o paradeiro de outros judeus escondidos em uma floresta. À época, os pesquisadores foram denunciados pela sobrinha do prefeito, Filomena Leszczynska, de 80 anos, que contou com o apoio de entidades ligadas ao PiS.

Museu de R$ 7 bilhões

A pequena vila de Markova inaugurou, em 2016, um museu com o nome da família Ulma, que também homenageia, com uma enorme placa de pedra, outros mil poloneses católicos da região de que tentaram ajudar os judeus durante o Holocausto — 116 deles foram mortos. Foram investidos 6 bilhões de zloty (moeda local), o equivalente a cerca de R$ 7 bilhões, no projeto.

Do lado de fora do pequeno instituto, de apenas 250 metros quadrados e que praticamente conta a história dos Ulma, há ainda um jardim de memórias, que celebra os Justos entre as Nações poloneses, título atribuído pelo Instituto Yad Vashem, em Jerusalém, aos cidadãos que ajudaram os judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Até os dias de hoje, sete mil poloneses já foram agraciados, o que faz da Polônia o país que recebeu mais títulos.

— Museus modernos têm uma narrativa, são criados para contar uma história. Aqui, o foco é a história dos poloneses que salvaram os judeus — afirmou Waldemar Rataj, diretor do centro.

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A poucos passos dali, também fica o Museu Skansen Zagroda, inaugurado pela Sociedade de Amigos de Markova, e administrado por Maria Ryznar-Folta. Para o local, uma área aberta, com um jardim, casas, um estábulo e até um moinho de vento que reproduzem a época da Segunda Guerra, foi transferida a residência original de outra família polonesa, os Szylar, em setembro de 2021.

É possível entrar no imóvel de madeira onde Eugeniusz Szylar e sua mulher esconderam outra família judia, os Weltz, em um sótão sufocante de cerca de 4 metros quadrados, de 1942 a 1944. Ali, a história teve final feliz: ninguém foi morto pelos nazistas. Os descendentes dos Weltz ainda vivem no Brooklyn, em Nova York, para onde se mudaram após a guerra.

Essas e outras histórias estão contadas no Museu Ulma dos Poloneses que Salvaram Judeus, ainda pouco conhecido pelos turistas que visitam a Polônia atrás de histórias sobre o Holocausto. Pelo menos até agora. Waldemar Rataj, diretor do centro, acredita que a beatificação, e o momento de maior da fama dos Ulma, vai ajudar o instituto a focar na parte histórica — e deixar a questão religiosa para a Igreja Católica. Os restos dos Ulma, que estavam em um cemitério, serão transferidos para uma igreja local, onde ficarão em um sarcófago.

Questionado se ele temia que o evento pudesse ser usado politicamente, Rataj disse que nunca se sentiu pressionado nos três anos que administra o local e afirmou que não queria fazer pré-julgamentos:

— O próprio cardeal de Varsóvia deixou claro que se trata da beatificação de uma família, e não de um país — lembrou Rataj. — Mas se isso acontecer, seria muito perigoso para o museu, que é uma instituição de pesquisa.

Em um artigo recente, publicado no jornal polonês Wszystko co najważniejsze (Tudo que é mais importante, em tradução livre), o próprio Duda, no entanto, afirma que o evento católico "vai além da dimensão religiosa": "Será também uma homenagem aos heróis que incorporam os mais elevados ideais da humanidade. A história do seu martírio merece reconhecimento global, pois embora seja terrível, é também um testemunho fortalecedor do amor ao próximo", escreveu o presidente polonês, um católico conservador reeleito em 2020 para um mandato de cinco anos.

* A repórter viajou a convite do Memorial do Holocausto de São Paulo, com apoio do governo da Polônia