Internacional

Viagem à Mongólia evidencia cautela de Papa Francisco com China e Rússia

Enquanto critica erros nos EUA e na Europa, Pontífice se mostra tolerante principalmente com gigante asiático, onde busca mais acesso

Agência O Globo - 05/09/2023
Viagem à Mongólia evidencia cautela de Papa Francisco com China e Rússia
Papa Francisco - Foto: Reprodução

Um pequeno grupo de católicos chineses que atravessou a fronteira para ver o Papa Francisco cobriu o rosto por medo de represálias. As autoridades da Igreja acusaram o governo comunista de impedir que os bispos da China continental viessem ver Francisco, e diplomatas disseram que Pequim observava de perto as atividades do Pontífice.

No entanto, quando o Papa Francisco retornou a Roma nesta segunda-feira de uma viagem de quatro dias à Mongólia, ele só tinha coisas positivas a dizer sobre a China.

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— As relações com a China são muito respeitosas, eu pessoalmente tenho grande admiração pela cultura chinesa. Eles são muito abertos, digamos assim — disse Francisco em uma coletiva de imprensa a bordo do avião papal.

Ele disse que esperava que houvesse mais exposição aos católicos romanos na China para que os cidadãos chineses não pensassem que a Igreja tinha a intenção de moldar sua cultura e valores ou que era "dependente de outro poder".

Há uma década como Papa, Francisco criticou o que ele considera a tendência autoritária dos nacionalistas ocidentais, a ideologia reacionária dos conservadores americanos na Igreja e o comportamento anticristão dos líderes em Washington e na Europa que não abrem suas fronteiras para imigrantes ou agem para proteger o meio ambiente.

Mas quando se trata da China, onde ele espera que o Vaticano faça incursões, Francisco é muito mais tolerante.

A diplomacia delicada do papa na região ficou evidenciada durante sua visita à Mongólia, uma nação imprensada entre a China e a Rússia, grandes potências dirigidas por dois homens fortes que incomodaram o Vaticano, mas que Francisco relutou em criticar.

Francisco, por exemplo, nunca culpou nominalmente o presidente russo Vladimir Putin pela invasão da Ucrânia. Antes de partir para a Mongólia, ele irritou ainda mais os ucranianos ao elogiar os governantes russos do século 18 e a "grande Mãe Rússia" que eles ajudaram a criar — um império que Putin invocou para justificar sua invasão à Ucrânia.

— Falei sobre a "grande Mãe Rússia" não tanto em termos geográficos, mas mais sobre sua grande cultura ao longo da história", explicou Francisco no avião papal, acrescentando que a fala foi "infeliz".

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Mas no voo de volta, ele falou sobre a grandeza de Fiódor Dostoiévski antes de esclarecer que nunca quis exaltar o imperialismo, que "sempre se consolida na ideologia". A cultura, disse ele, "nunca é imperialismo, mas é diálogo".

Francisco sugeriu que a Mongólia personificava esse espírito de diálogo, dizendo a um repórter mongol: "Podemos dizer que sua terra tem duas grandes potências — Rússia e China — e, por essa razão, sua mística é tentar dialogar com o 'terceiro vizinho', sem desrespeitar esses dois com quem vocês têm boas relações".

O termo "terceiro vizinho" não era um neologismo de Francisco, mas um eco da política externa oficial da Mongólia. Embora a economia da Mongólia dependa fortemente de seus dois vizinhos gigantes, e especialmente da China, a Mongólia adotou uma estratégia diplomática chamada de "terceiro vizinho" que busca reforçar a independência política e cultivar aliados e parceiros de investimento de países como Japão, Coreia do Sul, Alemanha e Estados Unidos.

— É algo muito real aqui — disse Odbayar Erdenetsogt, assessor de política externa do presidente da Mongólia.

Mas isso não mudou o fato de que a prioridade do país era manter as melhores relações possíveis com seus dois vizinhos reais: "Nosso presidente é muito amigo de Putin. Ele é muito próximo e muito amigo de Xi Jinping. Temos que ter essa conexão".

Perguntado se essa relação poderia ajudar a diplomacia do Vaticano com qualquer nação, mas especialmente com a China, Erdenetsogt ofereceu uma verificação da realidade diplomática.

— Não sei se isso pode ajudar alguém, mas estamos sendo muito ativos, fazendo com que nossas vozes sejam ouvidas, mas de forma correta — disse ele. — Não podemos ser muito barulhentos. Não podemos ser muito insistentes.

Francisco, assim como os mongóis, sente que precisa agir com cautela.

Em 2018, Francisco, buscando ter mais acesso à China, fez um acordo amplamente secreto com o governo para garantir mais colaboração na nomeação de bispos. Normalmente, o Papa nomeia os bispos, mas o governo comunista há muito tempo insiste em nomear os seus próprios bispos para controlar mais de perto a igreja estatal do país. A China já violou o acordo ao fazer nomeações unilateralmente.

No domingo, ao concluir uma missa na Steppe Arena, Francisco convidou ao palco dois bispos chineses, o cardeal John Tong Hon, bispo emérito de Hong Kong, e o cardeal eleito Stephen Chow Sau-yan, bispo de Hong Kong.

Segurando suas mãos, Francisco disse: "Gostaria de aproveitar a presença deles para enviar uma calorosa saudação ao nobre povo da China. A todas as pessoas, desejo o melhor. Esforcem-se, sempre avançando". Em uma mensagem para seu rebanho, mas talvez também para acalmar as preocupações do governo chinês, ele concluiu: "E peço aos católicos chineses que sejam bons cristãos e bons cidadãos".

Chow visitou a China continental no início deste ano em uma tentativa de construir pontes e promover intercâmbios no caminho acidentado da reaproximação entre a China e o Vaticano.

Perguntado sobre a ausência dos bispos da China continental, ele disse: "Eu adoraria ver os bispos aqui", mas acrescentou: "Sinceramente, não sei por que eles não estão aqui".

— É só que eles não puderam vir, mas pode haver outros motivos por trás disso — disse.

Perguntado por que uma explicação para a ausência havia se mostrado tão misteriosa, o bispo disse:

— Eles acham que não precisam explicar, basicamente. Governos diferentes, por que eles precisam explicar a todos? As coisas acontecem. Você não explica os problemas de sua família, de sua empresa, para o mundo, certo?

Outros não acharam tão misterioso o fato de os bispos da China continental não terem comparecido.

— Eu não decidi sobre isso — disse o Cardeal Francis Xavier Kriengsak Kovithavanij, de Bangkok. — Porque é o governo chinês que toma a decisão.