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Em Buenos Aires, livrarias salvam a pátria e se firmam como atração de turismo

Mesmo diante da crise econômica que assola nação portenha, capital mantém número grande de templos dedicados à leitura: são 619, entre grandes e pequenas

Agência O Globo - 06/08/2023
Em Buenos Aires, livrarias salvam a pátria e se firmam como atração de turismo

Um turista uruguaio entra na charmosa livraria Libros del Pasaje, no bairro portenho de Palermo, com uma pequena mala de rodinhas, faz uma compra generosa e sai feliz da vida. A história é relatada com brilho nos olhos por Maria Oyhanarte, dona do estabelecimento, citada em um best-seller internacional entre 150 livrarias que os bons leitores devem conhecer antes de morrer.

É verdade que a Argentina atravessa, mais uma vez, uma crise econômica complexa, sofrida e difícil. Mas quem chega a Buenos Aires com moedas fortes no bolso — o real incluído — está aproveitando as vantagens cambiais e, de quebra, ajudando setores do comércio como as livrarias portenhas, que continuam sendo um dos pratos turísticos fortes da cidade, com seu esplendor intacto.

Em palavras de Oyhanarte, as livrarias da cidade estão vivendo, graças ao turismo estrangeiro, e sobretudo latino-americano, um período de bonança:

— Nos fins de semana é difícil caminhar dentro de nossa livraria de tanta gente que entra. Temos muitos brasileiros, chilenos, uruguaios... É uma loucura.

Capital mundial

Segundo dados oficiais, Buenos Aires tem atualmente 619 livrarias, uma para cada 4.500 habitantes, que representam 24% dos espaços culturais da cidade — em 2014, um estudo da World Cities Culture Forum declarou Buenos Aires a capital mundial deste tipo de estabelecimento. Ainda que dezenas tenham fechado durante e após a pandemia, seu número ainda continua sendo expressivo.

As livrarias — e também as bibliotecas — marcam o mapa da cidade. Algumas regiões são icônicas, como a Avenida Corrientes, no Centro, onde existe uma concentração única de livrarias e sebos. Em Palermo, além da Libros del Pasaje, a já famosa Eterna Cadencia é uma das mais procuradas. Em Belgrano, a Caleidoscopio tem ampliado sua clientela, e hoje é uma das mais visitadas. No bairro de Villa Crespo, a La Internacional Argentina, especializada em livros usados de literatura argentina, tem edições antigas de autores novos e de clássicos como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar.

No bairro de Parque Patricios, a livraria Vuelvo al Sur, que abriu suas portas há 30 anos, continua sendo uma referência, principalmente no mercado interno. Em 2023, pelo terceiro ano consecutivo, a Feira de Editores (Fed), evento importante do mundo literário argentino, concedeu à Vuelvo al Sur o prêmio de melhor livraria do país. Ao recebê-lo, Tamara Cefaratti, gerente e filha de seus fundadores, agradeceu à Fed por fazer um reconhecimento às livrarias de bairro e independentes. Para Tamara, “militar pela leitura é um ato de amor”.

As livrarias portenhas não apenas sobrevivem, como continuam sendo espaços de divulgação da cultura essenciais na cidade. No bairro de Chacarita, cada dia mais badalado, a livraria Falena, inaugurada há sete anos, é um verdadeiro oásis que pode ser visitado todas as tardes. Lá chegam argentinos, mas também russos, americanos, europeus, e, claro, brasileiros, uruguaios, chilenos e outros latino-americanos. A dona, Marcela Giscafré, estima que entre 2022 e os primeiros meses de 2023 as vendas caíram em torno de 20%. Mas as férias de julho, frisa, foram muito boas e ajudaram a compensar.

A Falena acaba de ser selecionada pelo livro e série de TV coreano “Back to the books” (em tradução livre, de volta aos livros), como um dos lugares a serem mostrados numa nova temporada e na edição impressa. Uma equipe de TV coreana chegou a Buenos Aires recentemente, e passou dois dias gravando no lugar, uma casa antiga, de paredes de tijolo, típica desta região da cidade.

— A cultura argentina ainda é brilhante. Temos cinema, teatro, literatura, uma quantidade enorme de novos escritores que ganham prêmios e fazem sucesso no mundo. Mas tudo isso é diretamente proporcional ao nível de autodestruição que vemos em nosso país — desabafa Giscafré.

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A dona da Falena se refere à falta de políticas de promoção e proteção das livrarias, e dos escritores. A isso se soma a crise interna de um país que tem mais de 100% de inflação ao ano. Além disso, uma mudança de hábito global: milhões de pessoas estão deixando de ler livros.

— O turismo estrangeiro ajuda muito. Em julho, tivemos um mês excelente. Também temos clientes fiéis, muitos de outros países, até mesmo russos, que pedem livros muito específicos. Estamos de pé pelo nosso amor e nossa paixão pelos livros — afirma Giscafré.

Um templo

Para as pequenas livrarias, a sobrevivência requer mais esforço, e a ajuda do turismo internacional faz enorme diferença. Para outros, como a famosa El Ateneo Grand Splendid, um must para qualquer turista que passa pela capital argentina, os números são mais favoráveis. Segundo seu porta-voz, Juan Pablo Marciani, a livraria recebe entre duas mil e quatro mil pessoas por dia, e nos fins de semana o número de visitantes chega a seis mil. No passado, o local abrigou estação de rádio, teatro e cinema.

— O consumo de livros na Argentina continua sendo muito alto. Temos uma feira do livro que é referência no mundo, também do livro infantil. O livro é uma parte essencial de nossa cultura — aponta Marciani, que destaca a expressiva presença de brasileiros na Ateneo, há muitos anos. — É bonito de ver como nossos clientes brasileiros vão melhorando seu espanhol, e cada vez mais compram livros em espanhol. Os brasileiros lideram nosso ranking de turistas estrangeiros na Ateneo.

Assim como os visitantes brasileiros melhoram o espanhol ano a ano, os vendedores portenhos aprendem a entender um pouco de seus gostos, e do português.

— Quando pedem quadrinhos, já sabemos, querem Mafalda (risos) — diz Marciani, que também destaca o interesse dos brasileiros por livros de cozinha e história argentina.

Durante a pandemia — e com a implementação no país de uma das quarentenas mais duras da região —, muitas livrarias portenhas tiveram de aprender a utilizar as redes sociais para continuar vendendo. Foi um enorme aprendizado, lembra Oyhanarte. Muitas, como Libros del Pasaje, também reforçaram a oferta gastronômica, que ajuda a ampliar a clientela.

Um dos problemas que continua sem solução é a enorme dificuldade para importar livros, num país que sofre escassez de dólares e limita a entrada de produtos estrangeiros. O forte das livrarias de Buenos Aires são os autores argentinos, sobretudo de uma nova geração que está bombando dentro e fora do país. Entre os mais procurados pelos turistas estão nomes como Samanta Schweblin, Ariana Harwicz, Selva Almada, Mariana Enríquez, Leila Guerriero, Maria Moreno, Maria Negroni, Federico Falco, Martín Kohan, Alan Pauls, Tomás Downey e Hernán Díaz.

— Muitas pessoas chegam aqui na Libros del Pasaje querendo comprar o livro com as 150 livrarias escolhidas pela americana Elizabeth Stamp, e a todos tenho de explicar que não podemos importar. Tive de viajar para comprar um para mim — conta a dona da loja, olhando para estantes que deveriam estar cheias de livros de arte e, segundo ela, está cada vez mais vazia.