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Uma estética para comer
Nós somos um amontoado de células organizadas que “hospeda” outro tanto de bactérias “colaborativas”. Mais exatamente: cientistas liderados por Ron Milo, do Weizmann Institute of Science, publicaram um estudo que indica que o corpo humano tem 30 bilhões de células e contém cerca de 40 bilhões de bactérias (Exame, bityli.com/haQhn). Daí sermos um organismo, uma forma individual de vida que carrega em si bilhões de outras minúsculas vidas.
Cães, baleias ou pulgas, organismos relacionam-se com o mundo por meio de órgãos com funções sensoriais. Nos humanos, os cinco sentidos: visão, tato, olfato, audição e paladar. Não fossem os sentidos não perceberíamos o que acontece à volta. Exemplo: não possuímos um órgão sensor para perceber ondas de rádio, então, elas nos transpassam sem que as sintamos; morcegos “enxergam” emitindo pulsos de ondas ultrassônicas, as quais retornam como ecos.
A enorme vantagem comparativa do organismo humano em relação ao dos demais animais é que ele assimila, processa e significa conteúdos de cultura. Assim, para a compreensão ocidental, o branco pode ser mais do que uma cor, ele pode significar paz, como o preto pode lembrar luto. Na China, o branco pode ser luto. No mundo árabe, o preto é cor de alta dignidade. Na condição humana as coisas todas, eventos incluídos, se acrescentam de efeito simbólico.
Se as cores forem combinadas como em um quadro de Willy Zumblick, elas passam a ter um significado muito mais sofisticado. Elas carregam uma cultura geral e são lidas com alguma particularidade por cada indivíduo. A fala humana, igualmente, não é só articulação de sons. A entonação carrega e provoca emoções, seja alegria, seja tristeza, raiva ou ternura. Nessa compreensão, as falas do professor Vitório Wronski em sala de aula produziam enlevo intelectual.
A visão e a audição são sentidos talvez mais óbvios, aparentemente mais “administráveis”: protejo-me da luz que me alcança a retina ou dirijo meus olhos a um objeto; atento mais ao som agradável que me vibra o tímpano ou “fecho” meus ouvidos ao que não me interessa. O tato e o olfato são levados como se nos informassem sem que tivéssemos de estar a dirigi-los: em geral os cheiros nos surpreendem; não calculamos cada pisada ou cada gesto manual.
Mas o gosto, o sentido gustativo, este me parece um pouco desconsiderado. Claro, ele não vale mais do que os outros. O ver e o ouvir nos dão, entre tantos prazeres, os de apreciar a arte, por exemplo. Se o tocar e o cheirar não cumprissem outras tarefas, já valeriam por nos permitir gozar os carinhos e os aromas da pessoa amada. Tenho, entretanto, que a gustação tem igual status e merece igual dedicação. Pense na comida desejada ou no corpo da sua paixão.
As papilas gustativas são os receptores sensoriais do paladar. Elas são excitadas pelas substâncias químicas dos alimentos e são, com o olfato, responsáveis pela percepção dos sabores. Para que se possa apreciar o gosto de qualquer substância que compõe o que seja nossa refeição, é necessária a sua dissolução no líquido bucal, ou seja, deve-se mastigar a comida, se sólida, ou fazê-la passear pela boca, se líquida, para ser ensalivada.
As moscas, com seu aparelho digestivo primitivo, primeiro “cospem” nos alimentos, esperam a reação química; só então os sorvem. Os bovinos engolem-nos, alojando-os na pança, depois os devolvem à boca, para mastigação, posteriormente remetendo-os ao estômago, bioquimicamente preparados. Os primatas, humanos incluídos, dão-lhe o primeiro trato na boca, com a mastigação e a ensalivação, e isto devia merecer a aplicação carecida.
No mundo animal natural, os espécimes adultos têm, todos, pesos aproximados. É que animais comem como se estivessem se abastecendo de combustível: enchem o tanque com o necessário. Já o humano tem uma relação “psicologizada” com a alimentação. Mais do que suprir a demanda por calorias, muitas pessoas comem para preencher vazios de sua existência. Ingerem alimentos não para saciar a fome, mas para saciar carências emocionais que desconhecem.
O doce, o amargo, o salgado e o ácido são percebidos pelas papilas gustativas. Cada comida, ao passear pela boca, oferece uma combinação única destes sabores. Se ela é cheirosa, acrescenta variações que são “lidas” pela língua e pelo nariz, fornecendo prazeres, na boca, para o córtex cerebral. Nós nos devemos oferecer estes deleites, que pedem tão só simplicidade. Em geral, quem não está de bem com suas emoções não dá conta de gozar esses deleites.
O comer solicita a composição, em nós, de natureza e cultura: conciliação nossa com nós mesmos. É evento que pode dispensar um ritual, mas não uma conduta. Não é necessária uma etiqueta, mas uma estética. Uma estética da refeição. Na intimidade de uma cozinha doméstica, ou num requintado restaurante, não importa, há quem alcance degustar uma iguaria como há quem a engula, não se dando chance de apreciar o sabor do que está devorando.
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