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Motoristas, chefs e mesadas de R$4,7 milhões: como é a vida de oligarcas sob sanções do Reino Unido

Documentos revelam como milionários pró-Kremlin têm usado 'licenças' para contornar os bloqueios bancários do governo britânico após o conflito na Ucrânia

Agência O Globo - 31/07/2023
Motoristas, chefs e mesadas de R$4,7 milhões: como é a vida de oligarcas sob sanções do Reino Unido

Documentos revelados pelo New York Times nesta segunda-feira apontam que o governo britânico está permitindo oligarcas russos gastarem centenas de milhares de dólares em regalias como chefs particulares, motoristas e empregadas domésticas — apesar do bloqueio ostensivo às suas contas bancárias devido às sanções em retaliação à guerra na Ucrânia.

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As isenções, conhecidas como licenças, são um exemplo de como o novo sistema de sanções financeiras do Reino Unido, criado após o Brexit, tem se mostrado instável. Em alguns casos, os oligarcas tiveram direito a gastar mais de US$ 1 milhão (R$ 4,7 milhões) por ano em despesas de subsistência. Em outros, as autoridades tiveram que abandonar investigações criminais e retirar sanções após batalhas legais.

— Continuaremos a aumentar a pressão sobre Putin e cortaremos o financiamento da máquina de guerra russa — disse a secretária de Relações Exteriores britânica ao anunciar as sanções russas nas primeiras semanas da guerra na Ucrânia, em fevereiro de 2022.

Nos meses que se seguiram, o Reino Unido foi discretamente mais maleável. Concedeu ao magnata bancário russo Mikhail Fridman uma licença para pagar 19 membros da sua equipe, incluindo motoristas, chefs particulares, empregadas domésticas e trabalhadores braçais, durante o primeiro ano da guerra, de acordo com documentos analisados pelo Times e fontes familiarizadas com o assunto. O pagamento chegou a 300 mil libras (quase R$ 1,8 milhão) em cerca de 10 meses. Fridman também recebeu uma ajuda de custo mensal de aproximadamente 7 mil libras (R$ 42 mil) para cobrir as necessidades básicas da família.

As autoridades permitiram que seu ex-sócio, Petr Aven, recebesse uma mesada mensal de 60 mil libras (R$ 364 mil). A maior parte foi para uma empresa de segurança de propriedade do gerente financeiro de Aven, que está sendo investigado por potencialmente ajudá-lo a burlar as sanções, segundo registros do tribunal. Não está claro quais verificações o governo realizou antes de aprovar as transações.

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Fridman e Aven são descritos pelo governo britânico como "oligarcas pró-Kremlin" intimamente associados ao presidente russo Vladimir Putin, uma alegação que ambos negam e estão contestando no tribunal.

— Somos homens de negócios politicamente neutros. Isso é tudo — disse Aven, contatado pelo Times por telefone nos Hamptons.

Os ex-sócios estão entre os vários russos que sofreram sanções desde a guerra, apenas para terem as restrições aliviadas em segredo. O Tesouro Britânico concedeu pelo menos 82 licenças no ano passado e muitos outros pedidos estão pendentes, de acordo com os números oficiais analisados pela reportagem.

Os agentes da lei, que lidam com possíveis violações criminais da lista negra financeira, afirmaram que estão frustrados com essas decisões e com o sistema de licenciamento, que tem prejudicado as sanções. As autoridades do Tesouro permitiram que Aven, por exemplo, gastasse mais de 1 milhão de libras (R$ 6 milhões) enquanto estava com os bens tecnicamente congelados no país. Ao mesmo tempo, investigadores analisam possíveis casos de evasão e chegaram a invadir uma mansão do magnata no ano passado.

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Um porta-voz do Tesouro do Reino Unido se recusou a comentar casos específicos, mas disse que as licenças foram concedidas para permitir pagamentos de "necessidades básicas" e são "rigorosamente monitoradas". Um porta-voz da Agência Nacional de Crimes disse que não seria apropriado comentar porque está investigando Aven e Fridman. A maioria das fontes consultadas pela reportagem deu entrevista sob condição de anonimato.

As licenças fazem parte dos sistemas de sanções em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos. Porém, enquanto Washington geralmente concede licenças por motivos humanitários ou para cobrir despesas básicas de subsistência e honorários advocatícios, os critérios do Reino Unido são mais amplos. Entre as considerações, está o fato da licença manter o fluxo de dinheiro na economia. Um relatório recente do governo diz que elas são "emitidas para proteger as necessidades individuais e comerciais do Reino Unido".

As sanções russas foram o primeiro desafio de alto nível para um sistema de sanções novo e não testado, criado em 2021 após a saída do Reino Unido da União Europeia. Mais de um ano depois, as ambiciosas promessas do governo se mostraram difíceis de cumprir.

A Agência Nacional de Crimes britânica enviou cerca de 50 policiais para a mansão de Fridman no ano passado e anunciou uma investigação sobre fraude, perjúrio e lavagem de dinheiro. Neste ano, a agência abandonou todas as investigações, exceto a de lavagem de dinheiro.

Na semana passada, após uma briga judicial, o governo britânico foi forçado a retirar o empresário russo Oleg Tinkov da lista negra de sanções. Tinkov argumentou que foi incluído erroneamente: ele é um crítico declarado de Putin e renunciou à sua cidadania russa.

Os advogados de Fridman argumentaram em um dos tribunais mais altos do Reino Unido na quinta-feira que o mandado de busca era ilegal, uma vez que não especificava a data correta e se baseava em informações imprecisas coletadas como parte de uma campanha de difamação. Vários outros magnatas russos entrarão na justiça nas próximas semanas para argumentar, como ele, que foram injustamente visados simplesmente por serem russos. O governo ainda não aprovou uma licença, solicitada há seis meses, que permite a Fridman pagar por representação legal nesses processos.

Espera-se que Fridman também defenda, em um processo posterior, o direito de manter sua equipe doméstica, que o governo permitiu que ele mantivesse durante os primeiros 10 meses da guerra. Como no caso de Aven, a Agência Nacional de Crimes invadiu a mansão de Fridman por suspeita de lavagem de dinheiro. Depois disso, o governo negou o pedido de Fridman para manter sua equipe.

Os números do licenças destacam uma tensão persistente à medida que o governo se une aos Estados Unidos e à Europa para congelar bens de oligarcas ligados ao Kremlin. O Reino Unido tem sido um porto seguro para a fortuna russa há décadas. A Transparência Internacional estima que os russos acusados de crimes financeiros ou ligados ao Kremlin possuem propriedades britânicas no valor de 1,5 bilhão de libras (R$ 9,1 bilhões).

As sanções contra esses russos podem enviar uma mensagem a Moscou, mas também prejudicam as empresas britânicas. Escritórios de advocacia, contadores, agentes imobiliários, negociantes de arte e muitos outros se beneficiaram com o fluxo de dinheiro russo numa capital que foi apelidada de forma irônica de Londongrado.

Assim, embora o Reino Unido tenha praticamente declarado o fim da era Londongrado, os oligarcas estão encontrando maneiras de manter o país aberto para seus negócios.

— É uma indicação do motivo pelo qual este país tem sido tão ruim em controlar o dinheiro sujo russo — disse William F. Browder, um ex-grande investidor na Rússia que liderou uma campanha de direitos humanos contra Putin por anos. — Parece haver brechas para onde quer que se olhe e aqui está o governo dando total apoio aos oligarcas para contornar suas próprias sanções.

Antes de 2016, a conformidade com as sanções no Reino Unido era de responsabilidade principalmente da União Europeia. Após o Brexit, o governo estabeleceu um Escritório de Implementação de Sanções Financeiras, com uma equipe de cerca de 45 pessoas, para ajudar as empresas a cumpri-las. A invasão da Rússia catapultou aumentou a proeminência política do órgão e, desde então, a equipe cresceu para cerca de 100 pessoas.

O licenciamento pode fazer com que os contribuintes economizem dinheiro, pois uma vez que as autoridades apreendem um ativo, elas são responsáveis por sua manutenção. Iates e mansões têm custos de manutenção altíssimos, e uma licença pode manter o alvo das sanções pagando por compromissos que, de outra forma, caberiam ao Estado.

No entanto, isso não justifica as isenções que permitem que tais oligarcas mantenham seus motoristas e chefs particulares.