Internacional

Estimativas indicam que até 4 milhões de russos deixaram o país pela guerra

Quem consegue provar alguma conexão judaica foge para Israel, onde governo flexibilizou regras para russos e ucranianos

Agência O Globo - 30/07/2023
Estimativas indicam que até 4 milhões de russos deixaram o país pela guerra
Guerra entre Rússia e Ucrânia afasta milhões de pessoas de seus países - Foto: Reprodução

O calor de mais de 30 graus e o hummus do verão de Tel Aviv não lembram nada os modestos 20ºC e os cheburek de carne servidos nas ruas de Moscou em julho, o mês mais quente do ano na cidade. Apesar das praias e do mar azul, não foi essa a razão pela qual Anna, Ivan e Masha embarcaram em um avião e deixaram suas origens na Rússia, no início do ano passado, em direção a Israel. Membros da elite intelectual russa e bem-sucedidos, eles preferiam nunca ter que deixar seu país. Mas a guerra de Putin os fez mudar de ideia.

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Centenas de milhares de russos emigraram desde que Vladimir Putin decidiu invadir a Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022. As estimativas variam de 600 mil — que segundo a BBC seria o dado reconhecido pelo Kremlin — a até quatro milhões, dependendo da fonte que é consultada, como especialistas em demografia. Isso em um país que mesmo antes da guerra, já vinha passando por um processo de perda de população.

O país alcançou seu auge populacional em 1992, quando chegou a 148 milhões de pessoas. Mas começou a cair e chegou em 2022 a 143 milhões. Isso se explica pela queda na taxa de fertilidade russa. Em 2021, o número chegou a 1,5, abaixo do suficiente para repor a população. O encolhimento populacional também se explica pela emigração e um aumento na taxa de mortalidade russa mesmo antes da guerra e da pandemia, por questões como o alcoolismo.

Além da falta de transparência do governo russo na divulgação de números, também dificulta a contabilização o fato de que muitos deles são expatriados temporários: foram para países vizinhos, como Cazaquistão e Armênia com a expectativa de um dia voltar, quando a situação melhorar.

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Para Israel, imigraram russos que conseguiam provar alguma conexão judaica. O governo israelense abriu uma exceção ao processo de aliá tradicional (como é chamado o processo por que passam judeus do resto do mundo que decidem virar israelenses) e flexibilizou as regras para russos e ucranianos. Um escritório improvisado foi montado no próprio aeroporto Ben Gurion para processar os pedidos de cidadania dos novos imigrantes. A documentação exigida para provar as origens foi alterada para recebê-los.

— Eu disse à amiga da minha mãe que ia me receber que eu não tinha nenhum documento além da minha certidão de nascimento. Eles pediram para eu preencher os papeis, e, em dois dias, me deram uma carteira de identidade temporária. Eu não tinha poupança. Meus pais me deram US$ 2 mil (R$ 9.450 na cotação atual), era tudo que eu tinha quando deixei Moscou — diz a jornalista Anna Mikhailoba, que deixou seu país em 10 de março de 2022.

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Anna havia acabado de comprar um apartamento em Moscou quando a guerra começou. Ela havia começado a trabalhar no emprego dos sonhos em um museu há apenas cinco meses. Seu filho de treze anos estava bem adaptado à escola. Sua mãe e sua vó ainda estão na Rússia, mas devem mudar para Israel em breve. Ela diz que a sociedade russa está ficando cada vez mais paranoica e que seu pai fecha as cortinas quando quer assistir vídeos no YouTube para evitar os olhares de vizinhos pró-Putin — assim como tinham que fazer à época da União Soviética.

A urgência trazida pelo medo de que fechassem as fronteiras foi o que motivou muitos russos a deixarem o país logo nas primeiras semanas após a invasão. Esse foi o caso também da professora de inglês Masha, de 45 anos, que conversou com o GLOBO logo após terminar uma aula de hebraico — um dos principais desafios dos imigrantes russos que chegam a Israel. Ela e o marido acreditavam que as fronteiras seriam fechadas e não haveria mais voos para sair do país — o que acabou não acontecendo.

Medo da convocação

Masha afirma que o aspecto emocional foi o que a influenciou. Ela conta que, desde a ocupação da Crimeia, em 2014, já se sentia mal, mas, com a invasão do ano passado, a situação piorou.

— Eu não queria pertencer àquela coisa perversa. Se ficasse lá é como se eu fosse parte, porque na Rússia não se pode protestar. Quer dizer, pode, mas é muito perigoso. Se ficar lá, você tem que fingir que está tudo bem. Se não quiser fingir, você tem que arriscar sua liberdade ou ir embora. É uma maneira de dizer não a tudo isso.

Um dos receios de Masha e do marido era de que ele fosse recrutado para lutar na guerra. Além da oposição moral a Putin e ao conflito, o medo de ser mandado para o front é uma das principais razões que levou os russos a deixarem o país —sobretudo depois do recrutamento em massa adotado em setembro de 2022.

— Há três razões. Primeiro temos as consequências econômicas da guerra, o declínio dramático na qualidade de vida, apesar do fato de que em grandes cidades nada tenha mudado, como em Moscou. O segundo motivo é escapar de ser recrutado para lutar na guerra. Para Israel, imigraram mais homens do que mulheres — diz o professor Ze’ev Khanin, da Universidade Bar-Ilan, que estima que entre três a quatro milhões de russos deixaram o país depois do início da guerra, embora muitos temporariamente. — A terceira razão é que eles não estão contentes com o regime.

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O professor afirma que um dos pressupostos básicos da sociedade russa antes da guerra era de que o governo iria prover aos cidadãos qualidade e padrão de vida e, em retorno, exigir que não houvesse interferência no processo decisório do governo. Com a guerra, esse acordo foi quebrado.

— O governo começou uma guerra que ninguém queria por causa de poucos que a queriam, chamaram pessoas para lutar que não estavam prontas para participar. Isso prejudicou a economia, a inflação, os benefícios sociais. Isso não era parte do acordo —diz .

Fuga de cérebros

Essa imigração de um grupo vindo de grandes cidades como Moscou e São Petersburgo, composto por pessoas educadas e com altas capacidades técnicas, está gerando uma fuga de cérebros da Rússia, argumenta o professor.

— Há uma emigração total da comunidade high tech —diz Ze’ev Khanin. —Uma fuga de cérebros dramática, com certeza. E não necessariamente para tão longe. Na Armênia, o Produto Interno Bruto se multiplicou duas vezes e meia.

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Ivan Rozhanskiy era diretor de uma ONG para pessoas com necessidades especiais em Moscou. Quando chegou a Tel Aviv, onde o custo de vida é um dos mais altos do mundo, chegou a pensar em ser entregador de comida — embora, ao fim, tenha conseguido um emprego assalariado em um projeto para ajudar adolescentes recém-chegados da Rússia e da Ucrânia.

— Era terrível. Nos demos conta de que não podíamos mais viver num país que estava fazendo coisas tão terríveis, bombardeando um outro país, matando pessoas — diz Ivan, 36 anos, que já havia feito seu passaporte israelense depois da ocupação russa na Crimeia em 2014 e deixou Moscou com a mulher e o filho de quatro anos uma semana depois do início da guerra.

Ivan conversou com a reportagem enquanto sua esposa e a amiga comemoravam o aniversário fazendo um piquenique por Zoom em um parque ao sul de Jaffa com a família que ainda está na Rússia. A conexão emocional com o país de origem é evidente.

—Eu não acho que a Rússia será onde eu queira morar nos próximos anos, não deve mudar tão rápido —diz Ivan. —Eu quero voltar para a Rússia se eu sentir que há liberdade e governo que se importa com os direitos humanos.