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Irã: mães escolhem o exílio para garantir segurança de suas filhas

Repressão aos direitos das mulheres aumentou expressivamente na República Islâmica após revolta contra o uso obrigatório do véu, impulsionando fugas do país

Agência O Globo - 25/07/2023
Irã: mães escolhem o exílio para garantir segurança de suas filhas

Em uma noite chuvosa de primavera, uma jovem mãe iraniana com um braço mutilado, seu marido e sua filha de 3 anos encontraram um contrabandista perto da fronteira com o Iraque, que lhes deu um ultimato: garantir o silêncio da criança ou deixá-la para trás. A mãe, Sima Moradbeigi, de 26 anos, correu para uma farmácia para comprar um frasco de xarope para tosse e drogar a filha até que ela calasse a boca.

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Sob o manto da noite, a família deixou o Irã seguindo o contrabandista, passando por caminhos montanhosos e às vezes rastejando por um matagal lamacento para evitar os guardas da fronteira, que vigiam a movimentação na rota com lanternas. Horas depois, segundo Moradbeigi e seu marido, eles chegaram em segurança a uma mesquita nos arredores da cidade de Sulaimaniyah, na região norte do Curdistão iraquiano. Sua filha, Juan, mal se mexia.

A República Islâmica — uma teocracia que surgiu após a Revolução de 1979 no Irã — nunca foi hospitaleira com as mulheres que se rebelavam contra seus rígidos códigos religiosos de vestuário e comportamento. Mas os perigos aumentaram após uma revolta que começou em setembro do ano passado, desencadeada pela morte da jovem curda Mahsa Amini, de 22 anos, enquanto ela estava sob custódia da polícia de moralidade do país.

As mulheres tiveram um papel central nos meses de protestos contra o governo que se seguiram, exigindo a abolição de todo o sistema de governo clerical autoritário. As autoridades reprimiram a maioria dos protestos, deixando centenas de mortos, de acordo com denúncias de grupos de direitos humanos.

Algumas mães concluíram que seria melhor arriscar suas vidas fugindo do Irã para poupar suas filhas de uma vida inteira sob o regime autoritário. Estas são as histórias de três mulheres que fizeram essa difícil escolha.

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Transformada pela raiva

Dias após o início dos protestos, Moradbeigi disse que saiu pela porta da frente segurando um lenço na cabeça, que planejava queimar nas ruas de sua cidade natal, Bukan. Antes daquele momento, ela não se considerava política.

Ela havia encontrado a felicidade com seu marido, Sina Jalali, dono de uma loja de tecidos, e sua filha. Mas ficou furiosa com a morte de Amini, que morava em Saqhez, não muito longe da cidade natal de Moradbeigi, na região curda do noroeste do Irã. Assim como Amini, ela fazia parte da minoria curda do Irã, que sofre com a forte discriminação e repressão.

Quando ela se juntou ao protesto naquele dia em Bukan, disse Moradbeigi, foi atingida por uma chuva de tiros de um oficial de segurança, que a alvejou com dezenas de balas de metal. As radiografias de seus ferimentos, fornecidas por Moradbeigi e um de seus médicos, mostram os projéteis espalhados pelo osso do seu cotovelo direito.

— A cada minuto, eu estava vendo a morte diante dos meus olhos — disse Moradbeigi em dezembro, em uma das várias entrevistas realizadas nos últimos sete meses. — Mas meu coração estava com minha filha. Eu não podia morrer e deixá-la sob esse regime corrupto.

Os médicos alertaram que seu braço poderia precisar ser amputado, a menos que ela conseguisse uma substituição do cotovelo rapidamente. Mas a cirurgia era muito complicada para ser feita no Irã. E Moradbeigi temia que sua lesão a tornasse um alvo fácil para a polícia. Foi então que decidiu deixar o país.

Moradbeigi e seu marido passaram sete meses escondidos enquanto lutavam para encontrar um contrabandista que os levasse para fora do Irã. No entanto, sempre lhes foi dito que levar uma criança pequena seria muito perigoso, pois seus gritos poderiam denunciá-los.

No final de abril, eles finalmente receberam uma ligação: Por 10 milhões de riais iranianos (cerca de R$ 1.120), um contrabandista concordou em providenciar a fuga deles. Em poucos dias, eles venderam tudo o que tinham, até mesmo os livros dos filhos, e saíram de casa com analgésicos e US$ 600 (R$ 2.839) em dinheiro.

Uma família dividida e depois reunida

Mesmo antes do início dos protestos em setembro, as iranianas já arriscavam suas vidas para garantir um futuro melhor para si mesmas e, principalmente, para suas filhas. Algumas foram ajudadas em suas fugas por grupos armados da oposição iraniano-curda, como o Komala, baseado nas montanhas da região do Curdistão iraquiano, que se tornou um refúgio especialmente para os curdos que fogem do Irã.

Nasim Fathi, 38 anos, ativista contra o regime iraniano na cidade predominantemente curda de Sanandaj, no noroeste do Irã, foi uma delas. Ela disse que fugiu para Sulaimaniyah há um ano, depois de ser intimada a comparecer ao tribunal por participar de um comício político.

Nas semanas anteriores à sua fuga, disse Fathi, ela ficou sob a mira das forças de segurança iranianas, que a impediram de deixar o país. Ela enfrentou um terrível dilema: precisava fugir do Irã, mas era mãe solteira de duas filhas, de 21 e 10 anos.

Em julho de 2022, ela decidiu que não haveria futuro para nenhuma delas enquanto permanecesse no país. Deixando suas filhas para trás, Fathi atravessou a fronteira com a ajuda de um contrabandista.

— Prometi que nos encontraríamos quando o momento fosse seguro — disse ela em uma entrevista por telefone de Sulaimaniyah. Mas semanas depois de sua chegada, manifestações tomaram conta do Irã, colocando em dúvida o reencontro com suas filhas.

Sua filha mais velha, Parya Ghaisary, foi inspirada pelos protestos e se juntou a eles. Mas quando duas de suas amigas foram presas no final de setembro, sua mãe interveio do Iraque.

— Ela me pediu para levar minha irmã para o outro lado da fronteira — disse Ghaisary. — Éramos tudo o que ela tinha nesta vida.

Segurando seus passaportes e a mão de sua irmã, Ghaisary pegou um táxi até a fronteira iraquiana, onde disse aos guardas que ela e sua irmã, Diana, estavam atravessando para o casamento de um parente. Em poucas horas, elas se reuniram com Fathi.

Força da natureza

Para algumas mulheres iranianas que acabaram separadas de suas filhas, a agonia é superada apenas pelo medo dos perigos que o reencontro pode trazer.

— Eu fico muito mal quando imagino minha filha sendo vítima dos mesmos horrores que me forçaram a fugir do seu lado — disse Mozghan Keshavarz, uma ativista antigovernamental que falou por telefone de um local fora do Irã, que ela não quis revelar. — Mas não posso voltar ao Irã.

Os problemas de Keshavarz começaram em 2019, quando ela iniciou uma campanha para distribuir rosas a mulheres com e sem véu, em um esforço para uni-las. As forças de segurança entraram em sua casa e a espancaram na frente de sua filha, que tinha 9 anos, antes de levá-la para a prisão, disse Keshavarz.

Ela voltou a ver sua filha, Niki, em 2021, depois que ela recebeu licença da prisão para se recuperar de uma lesão na coluna que sofreu enquanto estava detida. Mas o reencontro foi breve.

Keshavarz foi forçada a se esconder em julho do ano passado, quando policiais invadiram a casa de seu pai depois que ela participou de um protesto contra o uso obrigatório do hijab, o véu islâmico. Quando um advogado lhe disse que ela provavelmente seria condenada à morte, ela fugiu do Irã.

Ela relembrou a noite de sua prisão em 2019, quando as forças de segurança ordenaram que Niki rasgasse um desenho colado na geladeira que dizia: "Não queremos o hijab".

— Ela se recusou — disse Keshavarz. — Fico honrada por ter ajudado a formar uma força da natureza tão destemida.