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Sexo: regras e neuroses
A compreensão que temos de nós mesmos não nos permite levar em conta o que temos de primitivo. Falo de primitivo no sentido do que, em nosso organismo, funciona pouco diferenciadamente de como funcionou em nossos ancestrais. A fome, por exemplo, decorre de comandos de instâncias primevas de nosso cérebro.
A diferença está em que um primata antropoide tinha fome e se atracava com o que pudesse submeter à condição de comida. Um humano urbano tem a mesma fome, não obstante, não caça nem tem relação direta com a produção de alimentos. O comer agregou valores ao devorar: as etiquetas à mesa e a sofisticação dos sabores.
As regras de conduta para o comer adquiriram tal importância que acabaram como intermediação significativa entre o instinto e a refeição. As especificidades das relações com a comida destacam não só a ocasião, mas a postura de quem come (etiqueta), identificando a formação e os lugares sociais de origem dos comensais.
Vontade de sexo, tal como o é a fome, é coisa primitiva. Fazer sexo, do mesmo modo que o comer, é mais complexo. Há introjeção de cultura. “A ordem do sentido, evocada por Jacques-Alain Miller, não é a ordem primitiva dos sentidos fisiológicos. Nesse contexto lacaniano, o termo ‘sentido’ equivale ao conceito de ‘significado’.
Lacan inspirou-se no filósofo Frege ao diferenciar o sentido (Sinn) do significado (Bedeutung). Tal diferenciação entre o sentido e o significado é, no âmbito da teoria de Lacan, o trajeto feito pelo sentido bruto da sensibilidade até o além do sentido inaugurado pela subjetividade.
A ordem subjetiva do significado, como se constitui sob os efeitos do simbólico, reorganiza a própria sexualidade humana como um ‘valor’, não como uma vivência pura. A mera descarga reflexa do instinto é redimensionada na subjetividade, ganhando assim um papel simbólico distinto de sua origem.
Quando Jacques-Alain Miller, tentando resgatar a contribuição mais original de Lacan, diz que o sujeito está perenemente enredado pela ordem discursiva, está nas entrelinhas afirmando que todo ente humano só pode desejar um objeto com a condição de o mesmo estar mediatizado pelo desejo do outro.
Através da socialização do corpo o sujeito é convertido em um animal ‘desnaturalizado’ e, a partir daí, os diversos discursos culturais passam a condicionar a nossa nova e alienada maneira de ser” (Marcos de Oliveira, Lacan e a sua antropogenia do sentido, Facebook).
Há milênios deixamos de ser natureza. O cérebro do humano atual nem estava pronto quando a cultura já incidia sobre ele. Seja: não há como escapar dos discursos culturais que nos são “falados”. Somos como que buscados e constituídos em nossa subjetividade por modos de pensar circulantes que nos alcançam e nos formatam.
O sexo restou o sexo mais os valores que lhe foram agregados: uma coleção de códigos permissivos – com poucas, ainda que inalienáveis obrigações – aos homens; para as mulheres, uma enormidade de impedimentos e conformação. Homens e mulheres – elas laborando em equívoco – reproduzem esses valores.
A sexualidade humana acrescida de valores foi parar nos códigos religiosos e jurídicos. Ao prazer do sexo adicionaram-se normas contratuais, ritos sociais, controles físicos, interdições de práticas, locais específicos, idade para fazê-lo, cláusulas negociais; também incentivos. Circundamos o instinto (ou a pulsão) de regulamentos.
Disciplina sexual com função repressora adoece as pessoas: neurotiza-as. Freud tem uma obra inteira mostrando isso. Os desdobramentos sociais dos valores disciplinadores agregados ao sexo não foram de todo pensados. Foucault, entretanto, já adiantou: as relações entre sexualidade reprimida e poder são muito ruins.
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