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Até mesmo após a morte

Rostand Lanverly 10/07/2023
Até mesmo após a morte
Rostand Lanverly - Foto: Arquivo/Facebook

Desde muito cedo acostumei ao hábito da leitura, pois enxergava em tal atitude forte instrumento para manter-me não somente informado das atualidades, mas ter aumentada a capacidade de raciocinar através da escrita e argumentação, além de adquirir enriquecimento relevante no vocabulário útil e na forma de expressar.

Então saí degustando textos os mais variados, deliciando-me com gibis, jornais, livros diversos, muitos dos quais me encantavam, independente da origem.

Tal exercício, jamais diminuiu com o decorrer dos tempos, muito pelo contrário, encanta-me ler frases escritas em fachadas de prédios, viadutos e até lapides de campos santos, nestes últimos, onde deparei com epitáfios que me levaram a meditar.

Cervantes o aplaudido espanhol ofereceu ao seu Dom Quixote, o seguinte dizer póstumo: “teve tudo em muito pouco, porque viveu como um louco”, enquanto isso, certa vez caminhando em setores de dois famosos cemitérios, um em Jerusalém, outro em Los Angeles, registrei respectivamente, pensares para mim inesquecíveis: “sou um escritor, mas ninguém é perfeito” e “o melhor ainda está por vir”. Frases que levam a vários caminhos, inclusive o da inspiração para todos que ainda vivem.

Noutra oportunidade em visita ao cemitério Piedade, Maceió, em mausoléu abrigando restos mortais de conhecida família, parei para apreciar o escrito em uma de suas fachadas: “eu sou você amanhã”, cujo teor assimilei como pura verdade, pois apesar das pompas ostentadas por muitos, até de forma extravagante, dos elogios nem sempre pertinentes que acalentam o amago de vários, o porvir derradeiro é único.

Mas foi visitando a necrópole do Caju no Rio de Janeiro, que encontrei gravado em uma pedra de mármore fixada em imponente túmulo uma única palavra: “Gonçalves”. Nada mais, nem sobrenome, data de nascimento, falecimento ou pistas de elogio fúnebre.

Deixei o recinto pensativo. Quem teria sido Gonçalves? Seria aquele poeta que em momento de profunda inspiração legou ao mundo a imponente “canção do exilio” cuja primeira estrofe dizia assim: “Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá.”

Quem sabe alguém muito especial, cansado dos holofotes a ele direcionados em vida, solicitara aos descendentes, fosse-lhe oferecido merecido ostracismo após a morte. Ou até o pai da Maria, aquela garota que em época de estudante encantava a todos com sua beleza esfuziante, que gostava do João, paquerava José, ficava com Felipe, flertava Robinho, mas não amava ninguém.

Estou certo que nem somente nos livros são encontrados motivos literários, para fazermos movimentar o raciocínio levando-nos a ampliar a sabedoria, uma vez ser o importante, estarmos atentos para tudo o que deciframos pois em determinadas ocasiões, poderemos até nos identificar com o teor de alguns epitáfios, tais como o aplaudido na inesquecível canção dos Titãs: “devia ter amado mais, ter chorado mais, ter visto o sol nascer, devia ter arriscado mais e até errado mais, ter feito o que queria fazer”.

A escrita, como forma de leitura, é ferramenta possuidora do dom de levar o homem além dos limites da inspiração, até mesmo após morte.