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Melhor que o mar
– É insuportável viver assim... Desculpa, estou mal. Só me resta desvontade, desgosto, desilusão. Ele está fazendo isso comigo, eu não faço nada.
– Ele está fazendo!? Estás sob constrangimento? Alguma chantagem que te poderia atingir? A mim me parece tão simples... Tens todas as condições de sair daí, o mundo talvez te espere de braços abertos.
– Mas, como? Como vou sair?
– Que tal começar deixando de responsabilizá-lo pela tua permanência? Que me dizes de um pequeno apartamento? Em seguida faz as malas, busca a porta, abre-a e te vais, ou te vens... A vida cá fora te receberá, pelo menos, com mais emoções do que tens aí.
– Ah, parece tão fácil. Não tenho coragem. Não sou forte. Nunca me acostumei a tomar decisões.
– Interessante o teu pretexto para ficar: fraqueza, descostume... Não é fraqueza. Tudo em ti é vontade de ficar. Queres os prazeres do teu desprazer.
– Tens razão... Fazendo o jogo do contente.
– Olha... Os interesses de ficar são teus...
– Tenho que ter atitude, ainda há tempo de ser feliz, de sentir o sabor da liberdade.
– Pieguice!
– Mas não me cobras atitude?
– Não, não; não cobro. Contesto-te quando responsabilizas a outro pelo que deixas de fazer. E não te falta atitude. Há atitude: a atitude de ficar. Ficar onde estás é atitude tua, de ninguém mais.
– Ai! Vou, sim, vou dar um basta nessa vida medíocre, falsificada, infeliz que vivo.
– É mesmo? Quando?
– Segredo: já andei por imobiliárias... Sabes? Minha advogada disse: “Ele só precisa de quem se preste a ser uma serviçal, para ficar bem... Uma gerente da casa, dos interesses dele.
– Imobiliária!? Advogada!? Andas tateando outras circunstâncias, então? Olha, a serviçal da existência do outro: muitos queremos uma, alguns conseguem e não se constrangem em desfrutá-la. E há quem goze no se prestar ao triste papel. E sem remuneração, rs.
– Rsrs. Não. É que não é mesmo simples. E o apartamento...
– Há inúmeros pela cidade.
– Rsrs. Mas eu quero um lugar certinho, pronto, me esperando. Não quero qualquer coisa.
– Claro, entendo: algo difícil de encontrar. Desenhaste um apartamento improvável. Assim, enquanto não o achas, vais ficando, e com um “justo motivo” para ficar.
– Mas, estou procurando, já é alguma coisa, não?
– Se te convences... Se o procurar te justifica o ficar...
– Ai! Vou te contar: já achei, preenchi papéis, inclusive com fiador...
– Mas isso é um passo libertário, ainda que retrocedido.
– Não era bem o que eu queria...
– Tu bem podes criar o teu lugar, se não o achaste à tua imagem e semelhança.
– Eu sei, eu sei, só não quero ficar em um lugar ruim.
– Eu imaginava que o ruim... que só não querias ficar onde estás.
– É... Liberdade não tem preço, tenho que ir, bater a porta, pronto.
– Em verdade, liberdade tem preço, e muita gente se engana atrasando o pagamento. Mas... “Viver é ficar se equilibrando entre as escolhas e as consequências". E as consequências, ainda bem, têm custo.
– Ai que coisa difícil para mim.
– Para todo mundo, não te ponhas como vítima, como se o mundo te tivesse enredado em uma dificuldade particular.
– Mas, não... Só não consigo dar o passo decisivo.
– Só!? Olha, não dar o passo decisivo é dar o passo decisivo no sentido de tudo ficar como está.
– Pensando nisso, as consequências...
– Não há garantias de serem melhores ou piores. Ficar também tem consequências. Se não largas o que tens, não pegarás outra coisa. Não cabe tudo, não é? Estás a repetir tuas exculpações de permanência.
– Mas, são mesmo tantas coisas.
– São? Pois está: faz a lista.
– Rsrs...
– Viste? Olha, se tens prazer na vida que chamas de medíocre, assume, fica nela. Não serás a única nesse conflito entre o ir e o ficar.
– Fui deixando o tempo passar, sem me dar conta. Fico com raiva de mim. Mas é tarde para mudar, pelo menos por enquanto...
– Por enquanto é tarde? Mais tarde será adequado? Não cabe mitigar tua permanência com o “por enquanto”.
– Não te preocupes, vou fazer tudo certo.
– Já, isso, sinto muito, não é possível.
– Como assim?
– Não é possível fazer tudo certo. Não há exatidão desenhada contra o futuro. Não há um mapa rumo ao futuro, ele nem sabe dos teus planos.
– É que já sei o que quero.
– E o que isso muda? Se não for feito valer, será nada, como é. E se for feito valer, não será tudo. Nunca é tudo.
– Quero ir para a praia, agora, nua. Quero o carinho do mar.
– Esperas que o mar te espere, suponho.
– Água muito fria. Frio... Vou esperar o calor.
– O agora, o nua... Desejos... Talvez intensos, urgentes... É o mundo: sempre incerto, mas sempre quente e querendo calor...
– Rsrs. Poisé...
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