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Ao pó retornarás
Não se trata exatamente de ter medo. Também não me parece que seja raiva. Mas isso, de que eu vou desaparecer do mundo, não me agrada muito. Talvez seja o que eu sinto: certa tristeza de fundo por saber que vou morrer.
Se eu acreditasse nessas coisas em que muitas pessoas acreditam ou fazem de conta acreditar, se eu pudesse me enganar como tantos conseguem, tudo ficaria mais fácil, haveria uma alegriazinha besta de vez em quando.
Eu até aceitaria euforias oficiais: saracotear no carnaval ou torcer aos gritos por algum time de futebol. Mastigo uma inveja enorme de quem consegue, mas nunca garrei gosto: se me vejo nessas coisas, vejo que não vou bem.
A Zelig (Woody Allen) só lhe doía morrer porque não concluiria um livro sobre o qual mentira. Disse que o houvera lido; jamais o lera. Não é o bastante para lamentar a morte, ainda que todo motivo seja motivo para não morrer.
A mim me importuna o assunto em si. Eu gosto tanto da vida que me aborrece essa sina de morrer. Um filósofo chamado Martin Heidegger considera que somos um “ser-para-a-morte”. Então, haveria um nada a fazer.
É claro que Heidegger tem razão. Não obstante a razão filosofal, nisso, sou de outra turma: um escritor de nome Elias Canetti vê na morte um inimigo que avança contra nós e que deve ser recuado. Propõe combate. É épico.
Há outros pensadores com outras ideias. Eu tenho a morte como algo que não enxergo, mas pressinto: a funesta está por aí. Ela me espera; eu não quero ir. É isso: não sei detê-la. Tenho que refutá-la, mas não sei saber como.
E o mais terrível é não saber como saber. Ninguém sabe. A insurgência contra os limites implacáveis da vida me lembra as opiniões assentadas sobre o tema. Nelas encontram-se fundamentos que eu classificaria em três tipos:
Os de fundo religioso resolvem a questão apostando em outra oportunidade; os fatalistas afirmam que vamos morrer e pronto; os esforçados defendem que a vida deve ser bem vivida, que o só havê-la já enseja se deleitar.
Os religiosos, eu os tenho sob suspeita: desesperam-se quando estão perto da feliz outra chance, ou se um ser amado a teve (afora o católico Agostinho). Os fatalistas são os mais racionais, mas não me animam a existência.
Com ressalvas, fico com os esforçados. Sua proposição colabora com a vida, mas aí mesmo é que não quero morrer. Faço o meu contentamento e morro? Não, não me agrada. Quero seguir no desfrute do bom de viver.
A morte não é nem mesmo o reverso da vida. A morte é nada. Tão quanto não éramos nada antes de nascer, não seremos nada depois de morrer. A morte é só uma inimiga inevitável: eu terei de encontrá-la; ela me vai matar.
Há duas atitudes possíveis diante dessa fatalidade. Uma é admitir que ela está lá e que um dia me vence, mas realizar o impossível para postergá-la. Então, adotadas as carecidas cautelas, deixar de lado a apreensão com o fado.
A outra é morrer por antecipação: transcorrer a vida rendendo homenagem à morte: embirrar-se e não fruir as coisas que os sentidos permitem. Ocupar-se em demasia com o desfecho imperativo da vida é desperdiçá-la.
Então, construir-me como se para sempre, como obra de arte (Nietzsche). A educação sofisticada dos sentidos é o melhor investimento do tempo de viver. Isso, durante a minha vida, nem a morte me vai tirar. Se tentar, reajo.
Compreendo sentidos como as faculdades tipicamente humanas de perceber, apreender e vivenciar as coisas, atendendo a mais do que os instintos e fazendo além do que cumprir normativas morais não refletidas.
Os sentidos são a minha hipótese de ter prazer com o corpo, de larguear o intelecto: pensar-me, saber-me, gozar-me. Tomo domínio do que a vida fez de mim e, sobre o que quer que tenha feito, faço-me meu criador (Sartre).
Construo a minha arte; invenção minha de mim: dou-me um modo de vida e vou vivê-lo. Ao fim do meu tempo cotejarei prazeres e pesares: realizarei um encontro contábil dos ganhos e gastos do gozo da minha existência.
Os gastos serão ralos, pois não apliquei em dissabores de travanca. Alguns ganhos: os prazeres com que me deparei foram celebrados. Então sim, e já isso nada me importa, sobrará pó, que ao pó retornará.
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