Artigos

Eu não atinava em nada

Léo Rosa de Andrade 11/05/2023
Eu não atinava em nada
Léo Rosa - Foto: Assessoria

Certas coisas tornam-se óbvias depois de ditas. Não porque um gênio as extrai dos confins misteriosos dados por existentes entre o céu e a terra (má tradução de Shakespeare) e as revela aos comuns. São coisas, suponho, que intuímos, então, se ouvimos alguém verbalizá-las, caem-nos como evidentes. Seja: já as sabíamos, apenas não havíamos pensado metodicamente sobre elas.

Lupicínio Rodrigues poetiza que “o pensamento parece uma coisa à toa”, e se espanta: “como é que a gente voa, quando começa a pensar”. Pensar pode ser devanear. Devaneio é conceber na imaginação, sonhar, segundo o Houaiss. Mas pensar também é filosofar. Filosofar é metodizar pensamentos. Considero que filósofo é o sujeito que bota razoável ordem na própria imaginação.

Eu estava a fazer esforço de organizar meus pensamentos, com a intenção de escrever. Não pensava em lançar filosofia ao mundo, que não tenho estatuto intelectual para tanto. Queria dizer essas crônicas que aprecio dividir com as pessoas, e só. Tentava recordar quem me reclamou indignado que nascera sem saber nada e vinha padecendo de excesso de esforço para aprender as coisas.

Não me lembro, então vou tributar o dito ao Anônimo. É que o pensamento carece de um autor, pois tem profundidade intelectual; é o equivalente popular de certa conferência pronunciada em 1945, em Paris, por Jean Paul Sartre. A palestra tornou-se um opúsculo: O Existencialismo é um Humanismo. Nele se discute a ideia condensada na frase famosa: “A existência precede a essência”.

A sentença encerra relevante controvérsia sobre a realidade humana. O que exprime a afirmação? Conforme o autor: “Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente é nada. Só depois será, e será tal como a si próprio se fizer”.

Dito em poesia, no jeito de Dorival Caymmi: “Quando eu vim pra esse mundo \ Eu não atinava em nada \ Hoje eu sou Gabriela \ Gabriela he! meus camaradas.” Então: Gabriela chegou vazia ao mundo. Não era uma pessoa, era um nada. Tinha existência, mas não tinha essência. Aí, foi vivendo, fazendo a sua história, construindo a sua essência, fazendo-se ser a Gabriela em que se tornou.

A responsabilidade do fazer-se traz os encargos da liberdade. Ser livre implica custo. O indivíduo tem razoável margem de eleição de caminhos, mas isso o angustia. Fazer escolhas que só o próprio indivíduo – e ninguém mais – pode fazer; isso assusta. Às vezes, ficamos vacilantes e não optamos. Não optar, contudo, também é uma escolha. Não temos, pois, escolha que não seja escolher.

O ser alienado não entende suas circunstâncias, é rebanho (Nietzsche). O ser consciente é livre, tem existência. Postergar a existência por medo de errar nas escolhas, protegendo-se de culpas, é um falso expediente. O mundo não dá sentido à vida; o mundo é, mesmo, um absurdo angustiante. O significado que pode ser encontrado na vida é o significado que nós damos a ela.

Anônimo aborreceu-se com a vida porque não nasceu informado das coisas e acabou tendo de se esforçar para safar-se de percalços e satisfazer suas vontades. A Gabriela, quando nasceu, não atinava em nada, agora é Gabriela. Eu, todo o dia, arrisco ser o que mais me venha ao gosto. E evito que se me aconteça coisa sem que eu faça parte dos sentidos do acontecimento. Gosto de viver.