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Ajudadora amaldicionada, violência sexual, política
Há normas para os corpos, masculinos ou femininos, infantis ou adultos. Há normas diferentes para as diferentes classes sociais. Corpos são conformados a regras. Não são somente as mulheres que recebem as disciplinas de adequação. As regulações dos homens não são menos ou mais leves do que as das mulheres.
As disciplinas são observadas e feitas observar (são reproduzidas) por ambos os sexos. Mas há uma diferença de poder nisso tudo: os homens decidiram originariamente sobre a produção das normas adequadas para funções, lugares, comportamentos, vestimentas, sexualidade, reprodução. Os homens, muito mais que as mulheres, fizeram as regras.
Os homens também se reservaram o juízo da não observância das normas. A tradição dos homens, na civilização ocidental, está inscrita nos chamados livros sagrados. O poder dos homens sacralizou suas “escrituras”; suas “escrituras sacralizaram o poder dos homens. Nelas, os homens estão entronados no topo da hierarquia doméstica, estão feitos patriarcas.
É da Bíblia (Gênesis), o livro sagrado dos cristãos: “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele. E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão”.
Eva, porém, deu-se a ideias próprias: desobedeceu ao “senhor’’; comeu da árvore do conhecimento do bem e do mal, interditada. E, pior, repartiu o fruto da árvore com Adão. O “senhor’’, puto da vida, interpelou Adão. Adão, pulha, culpou Eva, que, na ausência de quem culpar, responsabilizou a astúcia da serpente. Não colou.
A serpente, inocente, foi condenada a se arrastar sobre o ventre. Eva, foi amaldiçoada e, culpada das mazelas do mundo, sentenciada a parir com dor. Resultado: Adão teve que ganhar o pão com o suor do rosto; Eva restou como “prendas domésticas”. A quem duvidar, remeto à narrativa da versão Gênesis da “criação” do mundo.
Não obstante o punitivismo penal divino, as mulheres estão se desvencilhando da dominação masculina. As Evas estão se atribuindo atos e fatos sociais que seguem na contramão do que se espera de quem tinha um papel de acessório dos Adões. As Evas lutaram e conquistaram legitimidade social em diversas normas legais humanas.
Ainda que com atropelos, no Brasil, as mulheres estão dignificadas em condição de igualdade de gênero por preceito constitucional. Para consubstanciar essa dignidade jurídica (e política), diversas normas infraconstitucionais foram promulgadas, incluindo algumas que mitigam causas e consequências de agressão sexual.
Não está, entretanto, assentada essa conquista da história das mulheres e dos homens sensíveis ao feminino. As estimas sobre o corpo da mulher que circulam em nossa cultura ainda são por demais repressoras. Se temos um tanto de esclarecimento do Iluminismo, temos dois tantos de religião do Medieval.
Os religiosos querem retrocesso. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou o PL 5069/2013 que veda o atendimento no SUS às vítimas de violência sexual. Esse projeto compõe a série de investidas legais de grupos de substrato ideológico religioso no Parlamento.
Armadilhas estão embutidas no PL: querem a submissão das vítimas de estupro à autoridade policial; querem que se lhes retire o atendimento integral; querem que o fornecimento da “pílula do dia seguinte” fique submetido ao talante do responsável pelo serviço de saúde, que decidirá sobre ela ser abortiva ou não.
Feministas peticionam contra o projeto no AVAAZ (http://migre.me/rUCNL): “Vamos mesmo deixar que isto aconteça depois de tantos anos de batalha para melhores direitos para a mulher brasileira? Vamos mesmo deixar um homem retroceder o que custou centenas de mulheres se revoltando pra conseguir? Vamos relembrar a estes políticos que não estamos dispostas a abdicar dos nossos direitos, nem hoje, nem nunca, e que, se eles tentarem, não vamos ficar caladas nem quietas.”
Subscrevo a petição. Mas não basta. A briga é outra, é de mentalidade. Religiosos têm-se feito políticos para, no Congresso, travar briga por religião. Religiosos conseguem cada vez mais emissoras de rádio, televisão etc. Religiosos amealharam acachapante poder midiático.
Do altar midiático, vão à política; na política, poder para mais mídia; de tudo isso, dinheiro, muito dinheiro. Mais dinheiro, mais mídia, mais votos e, lógico, mais religião. Uma surda guerra religiosa, sobretudo pelo controle do corpo feminino. Se não nos precatamos, retornamos à ajudadora Eva e ao patriarca Adão.
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