Artigos

Discursos de tradição, feminicídio, Brasil

Léo Rosa de Andrade 20/04/2023
Discursos de tradição, feminicídio, Brasil
Léo Rosa - Foto: Assessoria

Os estudiosos não formam consenso sobre o extermínio de homens paraguaios na guerra travada entre 1864 e 1870. A maioria, porém, acorda que o conflito dizimou algo como 90% dos que contavam acima de 20 anos.

A Guerra do Paraguai ocorreu há século e meio. Hoje, os quase sete milhões de habitantes daquele país são metade homens, metade mulheres. Em tempos de natureza, cento e cinquenta anos não são muito tempo.

Nesse nada temporal o equilíbrio de nascimento entre os sexos se restabeleceu. Quem se der ao trabalho de estudar os dados estatísticos verá que foram nascendo decrescentemente mais homens até ocorrer paridade.

A população mundial divide-se quase igualmente entre homens e mulheres. As poucas discrepâncias relevantes que ocorrem são consequência de conflitos armados de grandes proporções ou de migrações de um único sexo.

Os Emirados Árabes, como quase todo o Oriente Médio, concentram, hoje, perto de três homens para cada mulher. Isso decorre de a região receber levas de imigrantes homens que vão procurar emprego sem suas famílias.

Outro desequilíbrio sucede na Rússia e nos países que compunham a União Soviética - URSS. Quinze por cento a mais de homens. Explica-se a redução da população masculina: guerras mundiais e assassinatos de Stálin.

O Brasil está equilibrado. Noventa e sete homens para cada cem mulheres. Talvez a violência urbana e rural e as mortes no trânsito (matamo-nos mais do que em países com guerra civil) sejam a causa da pequena diferença.

O equilíbrio mundial de nascimento de um e outro sexo impressiona. Os dedicados ao assunto têm dados que mostram que após grandes tragédias nascem mais mulheres que homens; depois, tudo volta ao normal.

Que levaria a isso? Não há controle possível. A natureza, então, teria vontade própria incidente na questão? Falta explicação conclusiva. Não dominamos todos os eventos do mundo. Ainda não nos elucidamos de todo.

O humano não se conhece completamente. Uma hipótese afirma que somos uma falha da natureza. A evolução produziu os códigos genéticos. No tempo e no espaço todos os animais, afora os humanos, se repetem.

Os bichos de uma mesma espécie comportam-se de modo igual sempre. As modificações que eventualmente estabelecem diferença derivam de relações com o meio ambiente e produzem seleção, natural ou artificial.

O humano consolidou-se seletivamente como uma coisa à parte. Nós pensamos sobre o nosso próprio pensamento. Sabemos que sabemos. Acumulamos conhecimento. Criticamos a nós mesmos e podemos nos rever.

No hardware (a máquina humana) instalou-se software (a cultura humana). Isso está claro. Mas sabe-se que o processo é mais complexo. A cultura instalou-se no cérebro antes de a cérebro ficar completamente pronto.

Conteúdos culturais, pois, não são apenas uma instalação posterior ajustada ao cérebro pronto. Cultura e anatomia implicaram-se. A cultura encontrou condições no cérebro. O cérebro evoluiu com propiciações culturais.

Na natureza animal há macho e fêmea. Humanos, um dia, foram macho e fêmea. As condições de anatomia, ou de bioquímica, separaram “funções sociais”. O desempenho selecionou os melhores no cumprimento de funções.

Na selva as diferenças físicas do macho e da fêmea recomendavam diferentes atividades. A situação era meio binária. Na natureza, contudo, machos não matavam fêmeas nem discursavam hierarquia. Eram funções, só.

Cabe referir Simone de Beauvoir: “Não acredito que existam qualidades, valores, modos de vida especificamente femininos: seria admitir a existência de uma natureza feminina”. Quer dizer, o feminino é uma construção social.

Nada obstante, os homens (macho mais cultura) começaram a valorizar seus papéis e a subordinar os papéis das mulheres (fêmea mais cultura). Já distante do ambiente natural produziu-se socialmente o patriarcado.

O patriarcado prestigiou as funções sociais masculinas (funções não requeridas pela natureza). Estabeleceu discursos diferenciadores dos sexos além do que os sexos têm de diferentes. Surgiram o controle e a violência.

Discursos patriarcais suscitaram o machismo. O machismo tomou mentalidades de homens e de mulheres. Homens e mulheres preservam, ainda que cada vez menos, a reprodução social (historicidade) do patriarcalismo.

Tempos herdados: produção histórica patriarcal: sexos com papéis sociais distintos, controlados, repetidos. Novos tempos: construção social libertária: equivalência entre gêneros. Reações machistas: violências, mortes.

O macho natural situado como homem social houve-se com mais direitos do que a mulher social que adveio da fêmea natural. Diferenças biológicas preservadas, no entanto, não abonam diferenças sociais ou brutalidade.

Tais coisas seguem codificadas em discursos de tradição, de família exemplar, de religião. Homens e mulheres, por equívoco ou estupidez, dão-se em holocausto aos seus rituais. Repetem um passado que só faz mal.

Essa persistência não é natureza. É ideologia. Postula diferenças inaceitáveis entre gêneros. Ideologia vencida, não extirpada. Vigora entre machistas. É só ler os jornais: Brasil, quinto país do mundo em homicídios de mulheres.