Artigos

Bem longe do coração selvagem

Dartagnan Zanela 17/03/2023
Bem longe do coração selvagem

Ah! Macabéa adormecida, que insiste em permanecer em berço esplêndido a sonhar, esperando a sua hora chegar para ver sua estrela brilhar. Mas o seu problema, querida Macabéa - que não quer acordar - é o mesmo de todos nós, brasileiros, praticantes ou não: a cada 15 anos acabamos esquecendo tudo que aconteceu nos últimos 15 anos, como bem nos advertia, sarcasticamente, Ivan Lessa.

Sofremos de uma intratável amnésia (depre)cívica, fruto, talvez, de nossa orfandade histórica, que nos faz cair num desamparo tal que, feito baratas tontas, e com uma inenarrável credulidade, acreditamos em toda e qualquer porcaria que nos seja regurgitada pela grande mídia em nosso colo.

Sim, eu sei que todos nós diremos que somos almas calidamente críticas e que, por isso mesmo, tudo aquilo em que depositamos nossa confiança passa, necessariamente, pelo crivo das peneiras da averiguação das fontes, da confrontação dos pontos de vistas divergentes e do exame da razoabilidade do que está sendo recebido por nós, não é mesmo? Não Macabéa, não mesmo.

Se fôssemos sinceros - não em público, porque daria uma vergonha danada; mas apenas conosco mesmo, no silêncio da alcova da nossa alma – iríamos admitir que toda a nossa suposta criticidade, toda a nossa hipotética cientificidade, não passa duma tosca repetição simiesca de jargões e cacoetes que nos são transmitidos pela grande Hidra midiática, seja por meio de seus telejornais, ou através de seus programas de entretenimento.

Sim, podemos continuar mentindo para nós mesmos o quanto quisermos e acharmos apropriado, mas a dura verdade é essa mesmo: somos uma sociedade viciada em noticiário, em entretenimento, em novidades que nos arrastam pelo lamaçal da ansiedade nossa de cada dia.

Não apenas isso! Somos uma sociedade arredia, feito égua xucra, diante de qualquer coisa que tenha a ousadia de exigir de nós alguma profundidade. E, assim o somos, porque sempre estamos com pressa, sempre, apesar de não termos a menor ideia do porquê estamos sempre tão afobados.

Sim, eu sei que as notícias abundam no mundo em que vivemos, elas estão por todos os lados nessa terra de abundâncias carnais, porém, todavia e entretanto, repetir feito um papagaio de pirata todas as manchetes printadas que chegam até nós, por recomendação do amado “algoritmo” do nosso coração, não é, de jeito nenhum, a mesma coisa que informar-se.

Também, é importante lembrarmos e, se possível for, jamais esquecermos, que repetir frases e slogans que tenham um eficiente efeito retórico também não é sinônimo de estar informado; é apenas prestar-se ao servicinho sujo de ser uma caixinha de ressonância para ideologias vagabundas que penetram sem dó em nossa alma pelo monossílabo fétido da nossa inteligência preguiçosa.

Aliás, esse segundo tipo de macaqueação mental tem um agravante: quando damos eco para os cacoetes retóricos que nos chegam, temos a sensação de que somos o máximo, que estamos "mitando", "lacrando", fazendo o maior bafão e, como consequência, não ficamos apenas com a falsa impressão de que estamos “bem informados”, mas também que somos “inteligentões”, mais sabidos que todos, mesmo que não estejamos informados a respeito de praticamente nada.

Sim, minha cara Macabéa, se olharmos para todos os costados políticos de nossa triste nação, veremos esse estado de espírito suíno pairando sobre inúmeros corações desavisados, que brincam de opinar sem realmente se informar a respeito daquilo que estão reverberando com seus bebedores de lavagem digital.

E caímos nesse tipo de arapuca porque, no fundo – que não é tão fundo assim – somos apenas bons medalhões machadianos e, por isso, preferimos um simulacro de informação ao invés de realmente nos informar. O que realmente queremos não é compreender melhor, e de forma mais profunda, a sociedade em que vivemos, mas apenas e tão somente poder defender nosso ponto de vista (que não é tão nosso assim), advogar em favor das nossas predileções políticas (que, na maioria das vezes, não são tão nossas assim), sem termos que, necessariamente, precisemos ter razão.

E esse tipo de sonsice custa caro, bem caro, como todos já podemos sentir em nossos bolsos e perceber com os nossos olhos se, é claro, não estivermos obstruindo a nossa visão com a peneira das ideologias, que deformam as notícias, para podermos continuar credulamente com nossa torcida inconsequente em favor das simpatias políticas tontas do nosso coração morfético, que se imagina volterianamente ilustrado, mas não é e, ao que tudo indica, jamais será.

Pois é, no tempo de Ivan Lessa, a cada 15 anos não mais lembrávamos do que havia ocorrido nos últimos quinze. Atualmente, ao que tudo indica, passados 15 dias, não mais lembramos de nada dos últimos 15 dias, de nada daquilo que vimos, ouvimos e, muito menos, do que havíamos falado.

Enfim e por fim, esse é o pano de fundo de toda a tragédia nacional que, diga-se de passagem, está bem longe de terminar.