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Cuidado com o cuidar
Tomaram uma mesa mais afastada. Ela se mostrava encantada: – Eu não conhecia, mas tinha vontade. Você adivinhou. Ele, exibido: – Hã, hã, eu pensei, pensei… fiz as contas, acertei. Ela: – Ah!, você não poderia saber. Ele: – Posso, devo, é como um dever de ofício; eu sou especialista em você, eu estudo você, eu sei você. Ela: – Como assim? Isso é preocupante! Não sei se quero alguém que entenda de mim. Imagine!, alguém por aí sabendo das minhas coisas, bisbilhotando, analisando. Não quero isso, não…
A fala dela ficou no ar. Após um suspiro profundo que encerrava com solenidade a estudada reflexão, ele escandiu: – Al-guém-por-aí? Bis-bi-lho-tan-do!? Você acha que eu bisbilhoto sua vida? Ela ostensivamente pensa antes de falar: – Olha, não quero ofender… se a palavra pesou, eu a retiro, mas… Não que você seja invasivo, mas eu me sinto invadida. Há que ser comedido com o cuidar. Uma coisa é cuidar da nossa relação, outra é cuidar de mim. Cuidar-me é minha atribuição.
O olhar dele ostentou um perder-se no nada. Articulou a expressão mais triste, deu o tom mais desgraçado à sua voz, deixou-se escorregar na cadeira, os braços penderam: – Então os meus mais dedicados cuidados invadem você? Ela empertigou-se. Não queria briga, mas se sentia no dever de sustentar sua posição: – Defina cuidado. Empertigou-se ele: – Você sabe o que quero dizer… é zelo, uma atenção toda especial. Ela sabia o que viria, tinha a reposta pronta: – Eu sei o que você quer dizer, e você?, sabe o que está dizendo?
Ele levantou-se com calma administrada, quedou-se em pé com administrada pose de severidade, caminhou com lento andar administrado em direção à toalete. Demorou mais do que o comum. Voltou a passos lentos, sentou-se com jeito ameno: – Sim, eu sei o que estou dizendo, sei carinhosamente bem o que estou dizendo. Eu gosto de cuidar de você; isso é a melhor coisa da minha vida. Ela foi cortante: – Então a melhor coisa da sua vida é cuidar da minha vida?
A surpresa que demonstrou fez ruírem todas as maneiras que ele trazia contidas. A prostração geral de seu ser veio sem qualquer governo. Algum silêncio, então falou ela: – Bem, vou atribuir seus ímpetos de cuidados menos aos fatos e mais ao excesso retórico. Mas cercar de cuidados cerceia e responsabiliza; eu perco margem de manobra e fico sem a graça do espontâneo e o espanto do aleatório; e você não se relaciona mais comigo e minhas surpresas e acasos, mas com análises e conclusões. Uma vida gerenciada? Não dá, meu “grande irmão”.
Havia constrangimento no ar. Ela: – Olhe, estou abafada, vou lá fora fumar. Ele: – Mas você não fuma. Ela: – Eu disse que vou lá fora, que estou abafada. Se eu não fumo, eu respiro, mas vou lá fora. Já se levantava quando a garçonete se aproximou para servir. Ficou passada. Entendeu que ele já havia tomado o cuidado de pedir. Contudo, olhando, apreciou o pedido; tornou a se acomodar.
Ele, sem consultá-la, se animou a servi-la. Ela, com vagar, levantou-se e, voz baixa, dirigiu-se à proprietária do restaurante. Retornou, chamou a moça que os atendera e meio perguntou, meio ofereceu: – Olha, se você quiser… Eu já obtive a permissão. Você e quem mais você quiser são meus convidados; a mesa está posta, façam bom proveito. É a janta de que gosto, mas do jantar eu não gostei. Colheu o sorriso da garota e olhou para o homem pasmado à sua frente. Dona do que acontecia, então, convidou: – Aceita estar à mesa ao lado, aceita um vinho, comer algo? E a noite recomeçou.
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