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Vida e tempo
Já ouvi em algum lugar que a Salomão se ofereceu, não sei se antes ou depois das dádivas de sabedoria e conhecimento de seu deus, uma taça de vinho. Ele estava ciente de que a bebida era encantada e que se a aceitasse não morreria jamais. O rei sábio não foi afoito.
Salomão ponderou sobre os bens e males de viver para sempre e decidiu não beber o vinho. Eu o beberia. Há quem, depois de morto, terá vida eterna. Eu não a terei, por isso, beberia qualquer coisa que não me deixasse morrer, ou que me fizesse viver mais e melhor.
Tenho dito, a propósito, que crentes que vão “partir desta para a melhor”, se pudessem se portar com mínima coerência, deveriam fazer festa ao enfrentar a morte, e que seus parentes e amigos deveriam expressar alegria com a “partida” do ente que, junto ao “senhor”, será mais feliz.
Mas nem quem crê bota muita fé nessa crença. Em verdade todos sabemos que somos condenados à morte, e com data mais ou menos marcada. Daí o desagradável que é esse assunto de morrer.
Em Mapa da Longevidade – Planeta Sustentável, assim como no IBGE, está tudo assustadoramente previsto: morreremos com 76,6 anos de idade. Dependendo da região, do sexo, da herança genética, da qualidade da vida, um pouquinho mais, um pouquinho menos.
Quer dizer, se morrer antes é azar ou é vida malcuidada, que recursos para estender a existência a ciência já nos dá; se morrer depois é boa sorte ou é um viver com carinho e atenção à própria vida.
No passado longínquo a vida não era um tempo, era um mero sobreviver, era a pura eventualidade das selvas ou dos encontros com doenças. Atualmente, quando as drogas nos permitem usar bem o que a programação dos genes nos concede, chegamos aos 76,6 anos.
Essa longevidade é recente. Nas condições primitivas durávamos coisa de 17 anos. Em tempos recentes, início do século passado, vivíamos 40 anos; nos meados, menos de 50 anos. Talvez por isso ainda não dominemos bem – não saibamos aproveitar – as conquistas contra o tempo.
Tempo: como é fácil senti-lo, como é difícil defini-lo. Com ajuda: “A sucessão dos anos, dos dias, das horas, etc., que envolve, para o homem, a noção de presente, passado e futuro” (Aurélio).
Eis o que somos: o curso do tempo, que se esvai, e nele o passado, que nos constitui e às nossas emoções; o presente, que torna cada ato irreversível; o futuro, um “lugar” em que colocamos, todos os dias, nossos melhores planos.
Está na moda dizer que não devemos dar muita atenção ao passado nem carecemos de nos preocupar com o futuro. O negócio seria “curtir” o presente. Esse pensamento me parece de um hedonismo meio barato.
Claro, ninguém pode parar a vida à espera do devir, mas não é muito lógico querer abstrair da consciência civilizada o fato de que haverá o dia seguinte e que eu tenho 76,6 anos de possibilidades de estar nele.
Essa avidez de “curtir” o momento parece-me o sintoma de uma angústia com duas causas: o desconforto advindo da percepção de que o tempo nos é ininterruptamente subtraído por programação genética; a ansiedade que nos advém do nos sabermos roubados pelas formas sociais de viver.
Quero dizer: tomamos conhecimento do “eu existo”, mas percebemos que a existência – tão longa, tão curta – nos está, cada vez mais, sendo tomada por circunstâncias que não controlamos. De outro modo: eu tenho uma vida para viver, mas o meu viver está devorando a minha vida.
Existem filosofias do tempo; para viver a vida desejo as filosofias da liberdade. Não ofereço sujeição gratuita a nada. Minha vida, o quanto posso, controlo eu. E, sim, Sartre já me advertiu de que liberdade não é fazer-se o que se quer, mas escolher entre alternativas possíveis. Também Freud já me dissera que ninguém pode tudo.
Aggiorno La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária: rotinas despropositadas, tradições conservadoras, discursos de controle moral, devaneios de salvar a História, crenças, superstições. O meu tempo/vida, eu o quero libertário. Vida livre, sem perder vida/tempo. Não quero ser imperador (Chaplin), não quero ser vassalo.
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