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O olhar e a ousadia que não temos
Rubem Braga, em seu livro “Recanto da primavera”, conta-nos, ao final de uma de suas crônicas, que num dia desses, num desses encontros casuais, deu de cara com um senhor que estava tranquilamente sentado no degrau da porta de sua casa, fazendo uma pequena fogueira com alguns gravetos.
O dia estava ensolarado e, tal atitude, chamou a sua atenção. Foi até ao encontro do velhinho e perguntou, como quem não quer nada: “Está querendo se esquentar um pouco senhor?” “Sim”, respondeu ele. “Estou”. “Mas por que é que você fez esse fogo? Faz Sol…” O senhor ergueu seus tristes olhos para o céu e disse, laconicamente: “Porque é bonito – e me faz companhia”. Podia ter ido dormir sem essa, não é mesmo?
Noutra ocasião, deitava minhas vistas noutras páginas. Desta vez nas laudas de uma das obras de Rachel de Queiroz. Era uma coletânea que reunia cem crônicas da autora, publicada pela Livraria José Olympio e com prefácio de Gilberto Amado (minha Nossa Senhora, que encheção de linguiça da minha parte).
Neste livro, há uma crônica intitulada “O Solitário”, onde Rachel de Queiroz nos conta a história de um misterioso senhor que ela conheceu em sua infância chamado José Alexandre, que diziam ter lutado na Guerra do Paraguai. Ele vivia no meio da caatinga, feito um lobo solitário. Fez uma cerca em torno de um pedaço de capoeira e lá viveu por muito tempo, sem amigos, sem amores, sem filhos, apenas ele, Deus e os seus fantasmas.
Se ele ouvia alguém se aproximar do seu canto, em dois palitos ele se escondia. Nenhuma viva alma via o seu rosto e, por viver às ocultas, mil e uma histórias contavam a respeito dele e do que ele fazia dentro do seu cercado sem porteira.
Porém, o pai de Rachel, uma vez ou outra conversava com seu “Zé Alexandre”. Ela conta que numa dessas ocasiões estava com o seu pai e pode ver o misterioso caboclo. Uma figura, segundo ela, de feições hercúleas que, com uma voz rouca, por ter perdido o hábito de falar, respondia ao seu pai quando ele o cumprimentava.
Agora, o que levou um homem a viver assim, isolado de tudo e todos, não se sabia e, até hoje, não se sabe. Apenas se especulava, e se especulava muito, mas o que realmente o levou a viver uma vida assim, de fato, ninguém sabia.
Pois é. O que se passa no coração humano é um baita mistério. É difícil dizermos com clareza o que se passa na cumbuca alheia, mas, com toda certeza, é muito mais fácil perscrutar o que se passa no íntimo dos outros do que inquirir a nós mesmos para conhecermos um pouquinho melhor esse canalha inconfesso que somos.
Nelson Rodrigues, que desde muito moço trabalhou como repórter policial, dizia que o ser humano é capaz de tudo, de qualquer coisa, até mesmo de um ato de misericórdia.
Ele, Nelson Rodrigues, conheceu de perto a baixeza que somos capazes de fazer, as mesquinharias que somos capazes de cultivar e, ao final, ainda sermos capazes de nos apresentarmos às luzes de Ribalta como sendo uma figura exemplar, um modelo de tolerância ou de algo similar, tamanha é nossa vil capacidade de dissimulação, tão grande é o abismo que há em nosso peito.
Bah! Se tivéssemos só um cadinho da curiosidade que temos para vasculhar a vida alheia, se tivéssemos só um pouco da sagacidade que apresentamos para denunciar o riscado torto daqueles que, literalmente, não nos devem nada, para refletirmos a respeito do tipo de caipora que somos para, quem sabe, podermos nos emendar e virarmos gente, com toda certeza a nossa vida, e daqueles que estão próximos de nós, seria mais leve, apesar de todos os pesares e leviandades.
Sim, muitas vezes somos capazes de reconhecer os nossos erros, deslizes e tropeços, mas não conseguimos, e nem almejamos, procurar identificar os efeitos e as consequências de nossas ações tortas sobre a vida daqueles que convivem conosco e de muitos outros que nós nem mesmo sabemos quem são, ou onde moram.
É cara pálida. Quando fala-se da importância da realização, frequente, de um bom exame de consciência é disso que se está falando e não apenas de enumerar os nossos erros, dispondo-os em uma lista feita com papel machê. Desnudar-nos diante de nossa consciência, olharmos para as nossas mãos sujas e perguntarmos: quais foram as consequências do que eu fiz? Qual a abrangência do meu erro? Com o que me comprometi e com o que acabei me comprometendo ao realizar isso? Muitas são as perguntas, muitas são as temíveis respostas indesejáveis.
Ao levantarmos essas indagações para nós mesmos, de uma forma franca, inevitavelmente, acabaremos, como nos ensina Santa Catarina de Sena, por reconhecer a nossa tremenda nulidade e inutilidade que, frequentemente, varremos para debaixo do tapete do nosso soberbo amor próprio.
E a soberba não nos falta. Nunca nos deixa na mão. Por isso precisamos, em nossas orações, pedir a Deus para que Ele limpe nossas vistas para que possamos ver com clareza não apenas a nossa intratável miséria nada original, mas também, nos permita contemplar a Sua infinita misericórdia que está, sempre, à espera de nós. Mas temos que realmente querer isso. E querer isso, com o coração nas mãos, não é brinquedo não.
Por isso, se meditássemos com a devida franqueza, veríamos que não temos nada para nos gabar, nadica de nada para nos gloriar. Se olhássemos para o íntimo do nosso coração com o mesmo olhar do velhinho da crônica de Rubem Braga, se tivéssemos a ousadia do seu “Zé Alexandre” para nos apartar de tudo aquilo que nos leva a sucumbir, e fizéssemos tudo isso para não mais sermos tão canalhas como frequentemente somos, talvez poderíamos, num dia desses, num desses encontros casuais, até mesmo realizar um ato de misericórdia digno desse nome, como bem nos lembra o velho Nelson Rodrigues.
Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela
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