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Ela, em forma e conteúdo
Levou-se ao mar como sempre o fizera: deu-se sensualmente às águas; delas saiu molhada, deleitosa, cheia de graça. Elogiaram-lhe o corpo. Respondeu com ar de quem se surpreendia: “Não basta”. Enquanto caminhava, se lhe repercutiram as próprias palavras: “Não basta”. Então entendeu: “Já não bastava”. Não lhe veio qualquer culpa pelo gosto que tinha nos prazeres dos sentidos nem pelo tanto que os gozara. O corpo, afinal, ademais de belo, era lascivo. Ela acolhia essa lascívia com satisfação. Gostava de se passar, de oferecer-se mais do que o corpo pedia.
Dava-se, entretanto, conta de que se faltava. Pensou apreensiva que sua juventude entrava em agonia, que teria que assumir os dissabores da vida adulta. Veio-lhe o “Ser ou não ser, eis questão. Será mais nobre sofrer na alma... Talvez sonhar”. Recusou os conflitos shakespeareanos; não queria o “sofrer na alma”, queria o “talvez sonhar”. Sorriu, compreendeu-se: “Estou com as dores das circunstâncias. As circunstâncias da existência são a alma da gente: Penso, logo sofro”. Sentou-se na areia. Deu-se ao prazer de se sentir destino dos olhares ávidos por seu corpo.
À cabeça não lhe veio a música da noite anterior. Encontrou-se cantarolando a suave melodia: “Esses moços, pobres moços \ Ah! Se soubessem o que eu sei”. Não podia ser, mas se conformou: dores de passagem. A culpa seria do que andara lendo. Lera desavisadamente. Na faculdade, as tarefas... Não imaginava que daria nisso, que pensaria, que tudo aquilo habitaria a sua cabeça, que já não teria como deixar de fazer as contas do mundo. Entendeu-se: gostava de ser o que era; fascinava-se com o que podia ser: as amarguras do superar-se, os prazeres da superação.
Olhou o derredor com o vagar de um jeito pensado. Era gosto e aflição. Recordou um texto: “A dor de ser intelectual: O professor nos avisou que estávamos entrando por uma porta que já não tinha volta. Tornávamo-nos intelectuais e não importa de qual classe social vínhamos, nunca poderíamos voltar a ela, jamais seríamos aceitos em nenhuma delas. Isso me fica claro agora. E nem sou intelectual o bastante, pelo menos não como gostaria de ser. Há tanto ainda o que ler e aprender. Sinto-me cansado e angustiado por isso” (Sérgio Rodrigo, razoesinconfessas.blogspot).
Aconteceu-lhe de se recordar de uma letra que a habitava: “Eu caçador de mim \ Vou me encontrar \ Longe do meu lugar \ Nada a temer senão o correr da luta”. “Esses versos, partes da canção... Discordo. Reescrevo e declamo: Eu construtora de mim \ Vou me fazer a mim \ Erguer-me sobre o meu lugar... Prefiro assim. Não temo o correr da luta, gosto de peleia, sempre pelejei. Eu me inventei, me fiz e me quero bem. Eu vou ser eu, não vou ser multidão”. Entre o caçar-se e o fazer-se, pensou nos encontros com intelectuais: “Bem, eu quero ser intelectual. E eu sei por quê”.
“Um intelectual é leal, mas contestador (Sartre); é maldito, nomeia as coisas indizíveis (Verlaine); é uma testemunha e um ator de seu tempo; não traça normas a ninguém e nem detém nenhuma coisa; busca a natureza intrínseca de tudo e as múltiplas verdades contidas numa mesma realidade; vê em si mesmo os vestígios do futuro e as pegadas do passado; aponta para a desordem sem tentar controlá-la. O prazer do intelectual é execrar e ser execrado, é ser livre apesar de pertencer a todas as misérias do mundo” (Gisele Leite, br.monografias.com).
Ao fim da nossa conversa, disse-me ela: “Isso tudo é verdade e me chega para o ofício de intelectual, mas não me satisfaz para a vida. Para viver, não me bastam minhas formas, mas também não me vou contentar com a compreensão do aparente ou das subjacências das coisas. Se penso sobre modos de vida, penso, igualmente, em viver. Contabilidade, para ir zerando: um tanto à função do intelectual, outro à esbórnia das emoções e dos sentidos. Se eu tiver consciência do mundo, mas não tiver consciência de mim, não existo. Até mais ver”. E se foi.
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