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As águas de 1949

21/08/2022
As águas de 1949

A Ponte do Salgadinho na Avenida da Paz – Hotel Atlântico

A chuva tamborilava nas vidraças das janelas, batia forte feito um chicote. O aguaceiro descia pelo telhado da casa, transbordando a calha de zinco, em cuja extremidade, parecendo cachoeira, caía em jorro no gramado do jardim. Três crianças alvoroçadas, alegres, aproveitando a inesperada bica, tomavam banho de chuva, brincavam empurrando um ao outro. Entardecia; de repente ouviu-se um estrondo, o relâmpago iluminou o céu e o mar, por um instante avistaram-se alguns barcos, jangadas, balançando em mar revolto, pescadores retornavam da faina diária. O trovão assustou os meninos e os moradores da redondeza. Era final do mês de maio de 1949 quando aconteceu o maior temporal da história de Maceió.

 Na cabeça de Gabriel vieram-lhe os caranguejos. Durante trovoadas goiamuns saem das tocas e entram facilmente nas armadilhas. As cinco “ratoeiras” feitas por ele, usando lata de azeite, deviam estar desarmadas, fechadas, com um baita goiamum preso. Dia seguinte, bem cedo, iria recolhê-las, pensava o menino. No início daquela tarde, como sempre fazia, Gabriel colocou cinco armadilhas em tocas de goiamum no sítio de coqueiros de Dona Sinhá, terra salobra, manguezal, celeiro de caranguejos, à margem do Riacho Salgadinho.

 Raios e trovões continuavam. Da varanda onde os meninos saltitavam encharcados não se enxergava o horizonte da imensidão do mar. Naquele momento estacionou na porta do bangalô um Ford 1946, preto. Doutor Bernardo abriu a porta do carro e o guarda-chuva, correu em direção à casa atravessando o jardim. Ao chegar à varanda foi abraçado pelos três filhos encharcados. Feliz por estar em casa gritou recomendando à esposa.

– Isabel, mande esses moleques trocarem de roupa, a chuvarada vai continuar, tenho medo de uma cheia igual à do ano passado.

 Não foi preciso o pedido a Isabel, era como se fosse ordem direta aos filhos. Os três correram para seus quartos, tomaram banho, vestiram pijamas, retornaram à sala onde o pai balançava-se numa cadeira de palhinha ouvindo o noticiário da Rádio Difusora de Alagoas – ZYO4 sobre a chuva forte caindo em toda região de Maceió.

Na noite do temporal os meninos brincavam despreocupados. Antes do jantar, Dr. Bernardo pediu ao filho mais velho um grogue. Mário abriu o bar, colocou três dedos de conhaque Napoleón que o doutor tomou de uma talagada, engolindo o líquido que desceu ardendo goela abaixo. Pediu outro, precisava, havia se encharcado na chuvarada, comentou. Depois do jantar a família reunida ouvia as notícias pelo rádio, algumas barreiras caíram na periferia, ninguém sabia a previsão do tempo. O noticiário confirmou que foi o maior volume de água caída na cidade nos últimos anos. Eram nove e meia quando Isabel colocou os meninos para dormir.

Por volta das dez horas da noite ouviu-se um estrondo contínuo, era barulho de água em movimento. Uma enxurrada em velocidade passava perto. A tromba d’água descia desde o bairro do Tabuleiro dos Martins, dezessete quilômetros acima da região da orla, e foi se avolumando, crescendo pelo bairro do Farol como uma onda desgovernada, atropelando o que encontrava pela frente. Virou carros e carroças, derrubou árvores. Quando a enxurrada desceu como uma cachoeira no bairro das Mangabeiras, desprendeu-se um enorme pedaço da encosta caindo por trás de mais de vinte casas. A barreira cobriu de terra e lama essas casas, muitas pessoas morreram soterradas.

 A tromba d’água tomou o Vale do Riacho Salgadinho, cada vez mais volumosa, insustentável, levava o que havia no leito do riacho. Na foz, no desembocar do mar, a água chegou avassaladora quebrando ao meio a ponte de concreto da Avenida da Paz sobre o riacho, arrastou os dois blocos pesados da ponte à beira mar.

No vão onde havia a ponte sobre o Salgadinho ficaram apenas os trilhos dos bondes pregados em seus dormentes. O tamanho da tragédia foi avaliado quando o dia amanheceu.