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Uma revolução pessoal
Não conheci propriamente Carlito Lima. Na verdade, explodimos juntos, na avenida da Paz, nos anos 1940, acabados de nascer. E seguimos juntos por nossa infância afora, passando pela adolescência e chegando à juventude, mesmo se, a partir de certa idade, moramos em cidades tão distantes uma da outra. É portanto uma honra especial e um grave compromisso escrever esse texto sobre ele e seu livro mais recente, “JEQUIÁ”.
A história que Carlito nos conta nesse livro, começa quando o jovem Pablo Márquez, um colombiano nascido em Cartagena das Índias, a mais bela cidade histórica da América do Sul, passa de navio por Maceió com sua filha pequena, Isabel, de dois anos de idade, e decide ali morar e ali se instala pelo resto da vida. A história termina, depois de três agitados volumes: MANGUABA, MUNDAÚ E JEQUIÁ.
Ao longo dos três pedaços da história, vamos conhecer a família que Pablo Márquez constrói em Alagoas, com virtuosa atenção a seus costumes e comportamento. Mais adiante, ficamos sabendo que Pablo fugiu da Colômbia para evitar a ação contra ele de bandidos, os responsáveis pela morte de sua esposa Rosa, aos 20 anos. Ele encontrou em seu caminho o grupo de arruaceiros assassinos e, na disputa com os criminosos, deixou para trás cinco deles mortos.
Pablo Márquez se tornou um homem perseguido em toda a região de Cartagena e Barranquilla. Então toma pela mão a filha que Rosa lhe deixara e parte por mar para o Rio de Janeiro. No meio do caminho, quando seu navio aporta em Maceió para cumprir compromisso, Pablo e Isabel, cada um de seu jeito, se apaixonam pela cidade e ele decide descer do navio e ficar ali, com a filha. Em Maceió, constrói uma vida de muito sucesso, fica rico e acaba fundando numerosa família, da qual teve do que se orgulhar.
São esses filhos, netos e bisnetos, seus amores e seus ódios, suas lutas pela sobrevivência e a comunhão entre eles, o tema dos três volumes escritos por Carlito Lima, com títulos em homenagem às belas lagoas do estado, “Manguaba”, “Mundaú” e “Jequiá”. Não sou capaz de reconhecer todos os personagens inspirados em pessoas reais. Mas seus vacilos e sucessos são jeitos tão naturais de ser que, mesmo que nos decepcionem ou os julguemos equivocados, acreditamos neles, somos solidários a seus defeitos, reconhecemos neles seres humanos como nós.
Entre esses personagens, um dos mais intrigantes é o jovem tenente do Exército Mário Peixoto que, se não me engano, foi inspirado na vida, nos costumes e em acidentes ocorridos com o próprio autor. Personagem original e raro na literatura brasileira moderna, Mário Peixoto vive em plena ditadura militar. O tenente nos revela aspectos de sua vida privada que nos fazem compreender que ele não é muito diferente de outros jovens brasileiros que lutavam contra a ditadura militar. Sem bravatas ideológicas, assistimos, ao mesmo tempo, ao horror de um regime autoritário e à luta por integridade e sobrevivência de uma de suas mais inesperadas e injustiçadas vítimas.
Mais adiante, encontramos outro personagem, de dentro da família, que contesta o regime militar de maneira clara e supostamente mais eficiente. Vera, cujo marido foi misteriosamente assassinado, se liga aos terroristas armados de bombas, dispostos a enfrentar a ditadura com as armas dela. Exilada na Itália, Vera só consegue voltar a Maceió, sua dolorosa obsessão, depois que se casa com um talentoso escritor italiano, cujo nome, Dante Alighieri, é uma homenagem à poesia. Dante é apaixonado pelo Brasil e, quando é promulgada a Lei da Anistia, vem com Vera morar em Alagoas.
Em “Jequiá”, último volume da “trilogia das lagoas” de Carlito Lima, o autor parece ganhar um pouco mais de pressa em chegar ao fim da saga familiar. Ele torna mais variadas as ocupações dos membros da família, os faz viajar e trocar de ambiente, mesmo quando estão em Maceió. Na ansiedade por um fim da narrativa, netos e bisnetos aderem ou criam núcleos que não estão mais no centro de interesse da longa e poderosa trama familiar criada pelo autor.
Digamos que, nessa relativa distensão, a família é que sai perdendo. E seus membros terminam numa lista de meras identidades, antes do último capítulo. O pungente último capítulo, aonde, aí sim, se conta o fim da fundadora história de amor entre Pablo e Victória, que nos tonteia e orienta.
Esse terceiro volume da trilogia tem a mesma força telúrica, de racionalidade e de sentimentos dos outros dois. Ele mantem o saudável desejo de reinventar a “literatura nordestina”, modernizar seus temas e seus hábitos, sua capacidade de abordar mundos antes proibidos, talvez até por um falso rigor moral. O que se destaca na ficção de Carlito Lima e em sua “cultura local”, é justamente a liberdade narrativa que lhe permite fazer com que alguém, que faz um discurso político importante, por exemplo, possa se interessar súbita e simultaneamente pelo corpo da bela mulher que passa à sua frente.
Como Gabriel Garcia Márquez ou Alejo Carpentier, o autor de “Jequiá” é, antes de tudo, um cronista da vida de seus conterrâneos, sem esquecer de onde eles vieram. Ele é capaz de fazer dessa qualidade um sólido apoio para se lançar no coração da origem de seus personagens. São eles que revelam, por sua ação, pelo que dizem ou pelas simples sombras que espalham por cada cenário, a grandeza de sua presença no mundo enquanto nordestinos e alagoanos. É com esses nordestinos e alagoanos, como ele, que Carlito Lima procura fazer sua gentil, mágica e vigorosa revolução cultural e literária.
Me sinto orgulhoso de ser amigo de Carlito, de ter dividido com ele experiências e descobertas que só na infância e na adolescência podemos experimentar. Aprendi com ele, e ele comigo, muita coisa que só essa convivência podia inventar. Acompanhando sua carreira de escritor bem sucedido, me sinto homenageado; como ele deve se sentir, com qualquer de meus filmes que dê certo. Nós somos parte de extensa família cultivada na beira do cais, na avenida da Paz.
Cacá Diegues.
OBS – O ROMANCE JEQUIÁ SERÁ LANÇADO NA PRÓXIMA SEXTA-FEIRA – 12 DE AGOSTO – A PARTIR DAS 18 HORAS NA ACADEMIA ALAGOANA DE LETRAS – PRAÇA SINIMBU – CENTRO. MEUS LEITORES SINTAM-SE CONVIDADOS.
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