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Banho de noiva
Há uma acusação – que acabou assumindo ares de verdade – dirigida aos homens: eles seriam interesseiros sexuais, desapegados, preocupados, apenas, com uma transa fácil (valor genético), enquanto as mulheres seriam amorosas, dedicadas, desprendidas e o quanto mais existisse de puro, bom e belo. Homens, líquido; mulheres, sólido.
Desconfio da acusação, ou pelo menos, da acusação unilateral. Não que os homens estejam despidos de interesses. Suponho que, se responderem honestamente, confessarão muitos “maus” motivos para estarem ou não com alguém. Não será com pureza d’alma que o rapaz olhará para o corpo feminino que passa; não será por uma paixão eternamente enlevada que será par desse corpo pelo resto da sua vida.
Expresso, pois, meu de acordo: os homens não valem nada, pelo menos para cumprir esse amor declarado eterno, único, desinteressado. Mas, nesse mesmo sentido, não creio que as mulheres valham mais do que os homens. Proponho similitude: valor igual. Aliás, adianto, proponho igualdade entre homens e mulheres em todos os campos da vida social.
Claro, se as mulheres declararem suas “verdades”, contarão, também, seus interesses, que serão, talvez, diferentes, mas, de jeito nenhum, piores ou melhores do que os dos homens. Eu continuo crente nas incidências subjacentes das coisas primitivas da natureza: no fundo, funções genéticas do macho, funções genéticas da fêmea; nenhuma superioridade ou maior valor moral, todavia, no que cada qual está programado para fazer.
Na natureza, os machos, todos os machos, esforçam-se para espalhar seus espermatozoides (genes) pelo mundo. Quanto mais úteros fecundarem, mais está cumprida a função reprodutiva perpetuadora da espécie. Já as fêmeas, todas as fêmeas, estão à procura – e para isso fazem o necessário – do macho mais apto para garantir a qualidade e a sobrevivência de sua prole.
E macho mais apto não é, precisamente, o mais forte: pode ser o que consiga mais comida, ou o que mais se dedique ao ninho. A natureza do macho é procurar fêmeas, lutar por elas; a da fêmea, escolher o macho mais apto, para com ele acasalar. Reprodução capaz de reproduzir-se, isso é a “ética” da natureza.
Então estaria tudo resolvido? Na natureza todos estariam satisfeitos? Aí é que está o busílis: os machos não estão satisfeitos, as fêmeas não estão satisfeitas. Eles traem as fêmeas, elas traem os machos. Para cumprir seu compromisso com a perpetuação da espécie (reprodução e sobrevivência dos filhotes), eles e elas fazem tudo o que é necessário: eles transam com “qualquer uma”, elas acasalam com o mais dedicado, mas transam, às escondidas, com o adequado, em geral, o mais forte.
O macho investe meio indiscriminadamente. Para a fêmea, o ideal seria que o mais dedicado fosse o portador dos melhores genes (mais forte), mas, em não sendo, ela dá um jeito (e algo mais), para ficar com o mais forte. Há estudos que demonstram que em algumas espécies cerca de 40% dos machos cuidam de filhos que não são seus. Pode-se, claro, argumentar que já não estamos na natureza; sim, mas a natureza ainda está em nós.
Nesse negócio de procriar, e, antes, de “fisgar” alguém, perduram muitos jogos de sedução, já atravessados pela cultura, claro. Eu soube que, nestes tempos em que somos mais que macho e fêmea – somos gênero – existe um pré-ritual de casamento chamado “banho de noiva” (dia da noiva). Fiquei encantado com a tão suave forma de apresentação da moça que se vai casar (aqui eu usaria um ponto de ironia, se a gramática me o contemplasse).
A senhorita (as que se dispõem a tanto, que ainda as há) é depilada, banhada, massageada, perfumada, pintada, penteada, untada com os melhores cremes. Fica, assim, um bocado de fino gosto. Oferta-se como prazer da pele macia, da melhor fragrância, da carne preparada, dos cabelos tratados. O cumprimento do ritual, contudo, não exclui os cálculos, seja de vantagem, seja de prazer.
E o noivo? O nubente, também parecendo ter gosto nisso, submete-se a práticas cerimoniais distintas: na véspera do contrato, está com os amigos, turvado de bebida. Gritarias da despedida de solteiro: são os modos machos de preparação ao enlace.
Se a delicadeza dela não lhe tira as contas, o machismo dele não lhe dá o controle da situação. Tudo são novas formas, modos civilizados da fêmea e do macho cuidar do que se chama de amor, ou jeitos novos, acrescentados pela cultura, da velha luta por conseguir chance de reprodução.
Beatriz Pereira da Silva registra protesto: “Não tem como misturar reprodução na natureza com ritual de casamento. Se a mulher se prepara e o homem não, existe uma relação de poder em que a mulher deve servir. Esse ritual é todo relação de poder. Imagine! Para algumas mulheres, ficar o dia inteiro se preparando para homem enquanto ele sai para beber com os amigos é algo bem desagradável”.
Penso, mas não falo: de fato, vivemos em tempos civilizados; vivemos ordenamentos sociais. Assim, esse “beber com os amigos” seria, como o “banho”, igualmente, um ritual de preparo? Sim, mas nem tanto, a meu ver. Algo a pesquisar melhor. Para suprir conceitualmente a discussão dos fenômenos, visito os alfarrábios.
Concluo que há diferença entre uma e outra coisa. Da mulher se espera e a mulher mesma se obriga (não todas e cada vez menos) ao rito de passagem; ao homem não se exige, e ele, de toda sorte, pode se dispensar dessa obrigação. Ela tem um protocolo de oferenda: ablução (liturgia religiosa, o imacular-se com o auxílio da água). Ele, no máximo tem uma noite de esbórnia; não se está preparando para ela. O trânsito cerimonial, pois, é expressão simbólica de poder. Beatriz tem razão: de poder desigual.
“Nos sistemas estáveis de desigualdade [em relações de gênero, nas quais se cumprem papéis de gênero] as pessoas não são conscientes do poder porque esse é tipicamente legitimado como autoridade [que, portanto, recomenda obediência]. Esse conceito refere-se ao consenso entre superiores e subordinados com relação ao dever de que alguns cumpram as demandas e as ordens de outros.
Esse consenso deriva de uma ideologia laica ou religiosa que justifica os direitos, obrigações e recompensas dos diferentes membros da sociedade com referência a alguns princípios amplos. A ideologia de gênero legitima o poder masculino e justifica a supremacia masculina, explicando porque e como homens e mulheres são diferentes e devem, por isso, ter direitos, obrigações, restrições e recompensas diferentes e, frequentemente, desiguais” (SCOTT, Joan, 1990 apud GROSSI, Patrícia K. (Org.) Violências e gênero).
“Independentemente da extensão em que diferenças de gênero são diferenças reais ou estereotipadas, os conteúdos das diferenças genéricas socialmente esperadas são expressos em normas de gênero e delimitam os comportamentos e os atributos pessoais considerados socialmente desejáveis para ambos os sexos” (MACEDO, 1988; DEL VALLE, 1989 apud GROSSI, Patrícia K. (Org.) Violências e gênero).
Resta, é visto, que os atos preambulares da “prometida” não são exatamente – ainda que ela assim o sinta – um deleite, mas uma servidão requerida por ideologia e concedida por alienação. Ademais de tudo isso – e tudo isso é muito importante –, concordo com Beatriz que tais pompas e circunstâncias devem ser extremamente desagradável.
Então, provocativa indagação minha: Por que muitas mulheres já advertidas e em condições de livrarem-se dessas armadilhas de hierarquia de gênero ainda se sujeitam à coisa toda? Ressalto que não falo das incautas, ingênuas ou dependentes, mas das que, voluntariamente, sujeitam-se. Qual o motivo? Reflito; deixo por menos: a rigor, não sei. Contudo, estranho. É de estranhar, não?
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