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Ousadias de outras vivências amorosas, o judiciário

16/06/2022
Ousadias de outras vivências amorosas, o judiciário

Vida disciplinada. As pessoas carecem de disciplinamento. Mesmo na vida afetiva, cumprimos amarração a modelos. E muito interessante: o\as que observam os atrelamentos formulados da vida social não se contentam em havê-los para si, mas os exigem para os outros.

Não suportando ver que há quem goze o que reprime, cada disciplinado\a por fórmulas de convivência é arauto e meganha da formulação que o alcançou e à qual se entregou (ou foi entregue). Disciplinado\as não suportam vidas em diferença. Cada fiscal dos costumes considera-se uma reserva moral.

Fórmulas de cunho moralista são acachapantes. Modelos que alicerçam hábitos sociais bussolam condutas, equiparam, fornecem certezas. Fora da sociedade disciplinada, regrada, prevista, está a sociedade de risco, os comportamentos de incertezas. Aqui “do lado de fora”, todavia, se move a vida, faz-se História nova sobre a História dada.

Vivemos monogamicamente. Se a convivência monogâmica não é fórmula universal, tem comprida raiz na Tradição Ocidental; tem status de ordenação assumida pela igreja católica e chancelada pelo Estado. Ademais, há rituais legais e costumeiros exigíveis aos pares amorosos que desejam conviver “nos bons costumes” e “na lei”.

Já há algum tempo, contudo, esse arraigado hábito está polemizado: “Poliamor: CNJ discute reconhecimento de união estável com mais de duas pessoas. O Conselho Nacional de Justiça decidirá se cartórios podem registrar como união estável relações que envolvam mais de duas pessoas.

Com esse julgamento, o CNJ irá orientar todos os tabelionatos do país sobre como se portar diante do chamado poliamor, ou seja, de pedidos para reconhecimento de famílias que sejam compostas por três ou mais partes.

O conselheiro João Otávio de Noronha, que é relator da matéria e corregedor-geral de Justiça, votou a favor do pedido de providência para que o Conselho proíba cartórios de concederem escrituras a uniões poliafetivas. Alegou que ‘o conceito constitucional de família, o conceito histórico e sociológico, sempre se deu com base na monogamia’. Para ele, ‘ninguém é obrigado a conviver com tolerância de atos cuja reprovação social é intensa’.

Luciano Frota informou que divergirá do relator. Representando o Ministério Público, Aurélio Virgílio, subprocurador-geral da República, defendeu que não há nenhuma nulidade no ato do tabelião que reconhece esse tipo de relação. Virgílio criticou a demagogia com que é tratado o tema: ‘O poliamor não é novo na história’. Argumenta que a discussão diz respeito à esfera privada da vida das pessoas e, portanto, não cabe ao Estado interferir nesta decisão.

Noronha rebate: ‘Vamos destruir todo o milenar conceito de família em um sistema onde impera o cristianismo?’ Virgílio treplica: Não cabe interpretação restritiva das leis sobre o tema. ‘O caso não viola a Constituição nem o código Civil’.

Pela ADFAS, a advogada Regina Beatriz Tavares ‘não quer proibir a existência das comunidades poliamoristas [o que é menos invasivo], mas que tabeliães de notas lavrem escritura com a marca da ilegalidade’” (MatheusTeixeira, JOTA, 24abr18, editado).

Enquanto a discussão corre no CNJ, o Diário Catarinense já noticiara (Rafael Martini, 13nov17, editado) “Decisão do TJSC reconhece relacionamento aberto como união estável. A 1ª Câmara Civil, em recurso sob a relatoria do desembargador Jorge Luis Costa Beber, garante o livre ajuste da vida amorosa.

No 1º grau, o pleito foi negado por se tratar de relação do tipo aberta, com contatos sexuais consentidos com terceiras pessoas, não obstante a relação tenha perdurado mais de 10 anos. Para Beber, todavia, ‘não compete ao Estado impor modelos familiares preconcebidos, tampouco se imiscuir num modelo de relacionamento afetivo, consensualmente escolhido pelos interessados, despido de preconceitos, onde a fidelidade e a exclusividade foram tratadas de modos diversos’.

‘O conservadorismo do julgador, em sua formação consolidada sob os influxos dos conceitos tradicionais da família monogâmica por excelência, e seus preconceitos com novas formas de relações baseadas no afeto, na união de propósitos, não devem impregnar a decisão judicial que envolva um modelo não ortodoxo’” (Rafael Martini, DC, 13nov17, editado).

Eis o reconhecimento, pelo Judiciário, da ousadia de cultivar outras formas amorosas. São posturas revolucionárias que sacolejam os costumes. Gritos de independência da tradição têm acontecido nas urdiduras sociais e batido às portas do Estado, pedindo os efeitos apaziguadores da chancela oficial.

De quando em vez mentalidades lúcidas e com poder decisório dão o devido cuidado à atualização das liberdades de viver. Alguns conselheiros do CNJ e os desembargadores da 1ª turma do TJSC ajudam a desamarrar os desejos que habitam o mundo de uma moral já falecida, mas que alguns não querem deixar que se vá.

Contudo, tristemente, a decisão final do CNJ não foi positiva. Concluiu que Constituição Federal explicitamente reconhece apenas a existência de casais monogâmicos, por isso não é possível que cartórios registrem a união poliafetiva. O entendimento é do pleno do Conselho Nacional de Justiça (26jun18), que vetou aos cartórios registrarem uniões dessa natureza.

A meu ver, a preocupação, mais que a Constituição, é preservar a ordem hereditária que mantém o “sistema”. A maioria dos conselheiros tomou em conta que a formalização documental da relação em escritura pública atestaria um ato de fé pública e implicaria o reconhecimento de direitos a receber herança ou previdência.

Deve ser bem anotado, em todo caso, que se houve oito votos nessa direção, a do veto, houve seis votos assentindo com a possibilidade de registro, o que me parece um placar alvissareiro, tendo em vista o conservadorismo e o legalismo incidentes no assunto.

Ademais, a então presidenta do CNJ e do STF, ministra Cármen Lúcia, ressalvou, delimitando o objeto da discussão: “Não é atribuição do CNJ tratar da relação entre as pessoas, mas do dever e do poder dos cartórios de lavrar escrituras. Não temos nada com a vida de ninguém. A liberdade de conviver não está sob a competência do CNJ. Todos somos livres, de acordo com a constituição” (CNJ).

Decorrência: a liberdade de convivência amorosa, por enquanto, não será lavrada em ata notarial, contudo, para desfrute dos libertários e horror dos reacionários, seguirá circulando na realidade. E, pelo que noto ou desejo notar, fazendo adeptos. Que bom.