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Testamento sobre viver ou morrer
O correr da vida, o seu começo e o seu fim sempre estiveram fora do alcance das decisões das pessoas. Era conformar-se com as circunstâncias limitadas pelo desconhecimento médico, farmacológico, enfim, tecnológico. Com o desenvolvimento da ciência médica, da química, da farmacologia, da tecnologia voltada ao amparo da saúde, nos surpreendemos lidando não mais somente com a vida, mas com o momento da morte.
Embora tantos recursos, a demarcação da hora da morte, ou de morrer, segue questão postergada. Aliás, não vamos morrer, acredita a maioria. A tradição popular herdou, preserva e reproduz narrativas ardilosas sobre o fim inarredável da vida. As artimanhas psíquicas para fugir do que temos de mais assustador em nós mesmos – a nossa natureza mortal – nos faz restar crentes noutros mundos, noutras dimensões, noutros planos, noutras iluminações.
Creiamos em céu ou inferno, em fim ou em reencarnação, todos temos horror à ideia de morrer. No Ocidente, nem os mais ardorosos crentes resistem ao medo de morrer ou à morte de um ente querido. Contradição: se alguém acredita honestamente que os seus vão para algum paraíso quando do seu passamento, devia, por coerência, fazer festa na despedida. Penso que interditamos a ideia de que morreremos. Com a ideia interditada, negamos a realidade e não cuidamos do fato.
No mundo mais civilizado, mais distante dessas crenças todas, as pessoas já se debruçam sobre a certeza de sua morte. Tomam a finitude da vida em sério e decidem sobre a questão, no limite, evidentemente, em que o querer pode operar sobre as circunstâncias. A prévia declaração de vontade para o fim da vida já é possibilidade legalizada em países como Estados Unidos, Holanda, Espanha, Bélgica, Inglaterra, México, Uruguai, Alemanha, Argentina, Áustria e Portugal.
Nós não temos uma lei, mas a Resolução nº 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina oferece orientação ética aos médicos sobre a questão. E mais importante, o CFM, com a publicação da Resolução, deu início a essa conversa impostergável. E o fez com muita sensatez, pois afinal costuma ser nos corredores dos hospitais que os familiares, uns com elegância e outros com cerimônia nenhuma, vão discutir providências para o “seu” doente terminal.
Considerando a ótica da medicina paliativa, o Conselho posiciona-se por levar em conta a vontade manifestada da pessoa sobre o próprio destino. A forma documental seria o Testamento Vital ou Biológico. A oportunidade para o seu uso seria aquela de uma doença em decorrência da qual o indivíduo não mais teria condições de optar.
Transcrevo da Resolução referida: “Art. 1º. Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, previa e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente sua vontade; Art 2º. Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade”.
No mundo jurídico há discussões calorosas que opõem o respeito à autonomia de vontade ao direito fundamental à vida. Controvérsias jurídicas à parte, a dimensão da dignidade de uma pessoa é ela mesma que a dá. Ademais, as condições de vida digna não podem ficar expostas às emoções (boas e nem tanto) que alcançam familiares relutantes. Ela é prerrogativa do doente.
Ainda que haja uma garantia constitucional genérica à vida, a dignidade também é uma garantia constitucional que o indivíduo tem. E ninguém melhor do que o sujeito em suas circunstâncias objetivas para, não querendo passar pelos dissabores desonrosos do arrastamento da existência diante de uma doença sem chance de cura, decidir por um fim em conformidade com seus conceitos e valores.
Nesse sentido, tramita no Senado da República o projeto de lei nº 149, de autoria do senador Lasier Martins (PSD/RS). Está na Justificação: “As diretivas antecipadas de vontade que este projeto pretende instituir e disciplinar, entendidas como o documento pelo qual o indivíduo dá o seu consentimento ou a sua recusa para algumas modalidades de tratamento, são a concretização do reconhecimento da autonomia dos pacientes, especialmente daqueles que se encontram em situação de maior vulnerabilidade – os pacientes em fase terminal de doença e que não estão em condições de expressar a própria vontade.
Nas últimas décadas, temos testemunhado grande desenvolvimento tecnológico na área médica, o que tem contribuído para o prolongamento da vida por meio de suporte clínico intensivo. De um lado, não se pode negar que os avanços observados trouxeram benefícios para inúmeras pessoas com doenças graves. De outro lado, surgiram diversos questionamentos no campo da bioética, principalmente no tocante a temas como a terminalidade da vida e a autonomia das pessoas em decidir sobre os tratamentos aos quais desejam se submeter, especialmente daquelas com doença em estágio avançado e sem nenhuma perspectiva de cura”.
O nosso Congresso Nacional costuma contornar temas que não formam unanimidade. Suponho, pois, que a matéria não será votada em curto tempo. Os médicos, contudo, por seu Conselho Federal, em decisão lúcida e valente, sabendo que forçar a vida além da conta causa apenas dor e angústia, orientam a conhecer e obedecer a vontade explicitada por um paciente quando ele podia fazê-lo. A materialização da dignidade humana pode ser o ato médico que cumpre o desejo de um paciente por morrer com decência e em paz.
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