Alagoas
Há 115 anos nascia o mito Tenório Cavalcanti, o homem da capa preta
Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque nasceu em Bonifácio, no município de Palmeira dos Índios (AL), no dia 27 de setembro de 1906, filho de Antônio Tenório Januário Cavalcanti de Albuquerque e de Maria Cavalcanti de Albuquerque, pequenos proprietários rurais. Descendente de Francisco Alves Cavalcanti Camboim, barão de Buíque, deputado provincial em Pernambuco de 1835 a 1837, seu pai pertencia a um ramo empobrecido de poderosa família nordestina. Outro parente, seu padrinho Natalício Camboim de Vasconcelos, foi industrial em Alagoas e deputado federal pelo mesmo estado de 1909 a 1926.
Iniciou os estudos em Palmeira dos Índios, mas, órfão de pai aos 12 anos, viu-se obrigado a contribuir para o sustento da mãe e dos irmãos. Algumas fontes afirmam que seu pai morreu de doença, e outras que foi assassinado numa das inúmeras rixas ocorridas no violento sertão alagoano. De qualquer modo, com a morte do chefe, a família se desfez das propriedades e Tenório passou a trabalhar como empregado em fazendas de compadres e parentes, inicialmente na serra da Mandioca e depois em Quebrangulo (AL).
Em 1926, com muito pouco dinheiro, transferiu-se para o Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Trazia uma carta de apresentação de seu padrinho, a qual, no entanto, pouco o auxiliou. Hospedado em pensões humildes ou em casas de parentes no subúrbio, trabalhou como lavador de garrafas na cervejaria Brahma, servente, copeiro e ajudante de enfermeiro no Hospital dos Marítimos, garçom de pensão, porteiro de hotel, empregado em loja de roupas e motorista de caminhão. Ao mesmo tempo, matriculou-se no Ginásio Guanabara.
Em 1927 ocorreu o fato que determinou o rumo de sua vida: foi convidado a administrar uma fazenda em Duque de Caxias, à época parte do município de Nova Iguaçu (RJ). O proprietário das terras, Edgar de Pinho, era cunhado de Otávio Mangabeira, então ministro das Relações Exteriores, e necessitava substituir um empregado assassinado em conflito pela posse e demarcação das glebas. Na ocasião, a construção da rodovia Rio-Petrópolis, cruzando o território caxiense, provocava a valorização dos terrenos, em boa parte ainda não saneados e cobertos de pântanos. Consta que Tenório teria prestado ajuda à construção da estrada, fornecendo materiais.
Como administrador da fazenda, Tenório envolveu-se em sucessivos choques armados, com saldo frequente de mortes e feridos, e viu prosperar sua fama de pistoleiro de boa pontaria. Acusado de envolvimento em tiroteios, conheceu nesse período sua primeira prisão, em Petrópolis (RJ), tendo sido libertado por força de habeas-corpus.
Devido provavelmente às suas ligações com a família Mangabeira, em 1932 forneceu uma tropa de mulas para os rebeldes constitucionalistas de São Paulo. Em seguida, quando Edgar de Pintho arrendou suas terras a uma empresa alemã dedicada à exploração de madeira, carvão e lenha, Tenório continuou a servir à fazenda. Na época, destacou-se na repressão a uma greve de trabalhadores que se transformara em rebelião. Sem deixar o emprego, foi adquirindo terras encharcadas fadadas a valorizarem-se anos depois, quando se concluísse o saneamento da Baixada Fluminense.
Pela mão do político local Getúlio de Moura — mais tarde deputado federal e seu adversário — filiou-se à União Progressista Fluminense (UPF), em cuja legenda elegeu-se em 1936 vereador à Câmara Municipal de Nova Iguaçu, representando o distrito de Duque de Caxias.
No ano anterior, seu partido fora derrotado nas eleições para o governo do estado do Rio pelo candidato do Partido Popular Radical, o almirante Protógenes Guimarães, apoiado por Getúlio Vargas. Desse modo, na Câmara Municipal, Tenório se situava na oposição tanto ao governo estadual quanto ao federal. Exerceu o mandato de vereador até o advento do Estado Novo (10/11/1937), que suprimiu todos os órgãos legislativos do país. Seu oposicionismo, entretanto, não impediu que, ainda na vigência do regime ditatorial, fosse aprovado em concurso e nomeado agente fiscal em Duque de Caxias.
Ao longo desse período esteve envolvido em tiroteios que produziram grande número de vítimas, provocados, segundo afirmaria mais tarde, a mando do delegado Joaquim Façanha, adversário político que derrotara nas eleições. Num desses entreveros, foi atingido por vários tiros e hospitalizado. Antes, contudo, matou seu atacante. Pouco tempo depois, o delegado Façanha foi assassinado no interior de um trem e Tenório, acusado do crime, recolhido à Casa de Detenção. Novamente beneficiado por um habeas-corpus, refugiou-se em Alagoas.
De volta ao Rio, deparou-se com nova ordem de prisão, sendo recolhido à penitenciária de Niterói, onde passou 42 dias. Libertado, reinstalou-se em Duque de Caxias, retomando sua trajetória pontilhada de choques armados e episódios de violência. Atribuía esses conflitos a Ernâni Amaral Peixoto, interventor federal no estado do Rio durante todo o Estado Novo (1937-1945), e ao secretário de Segurança Agenor Barcelos Feio. Em diversas ocasiões, afirmou que as cicatrizes de bala — mais de 40 — distribuídas por seu corpo haviam sido obra dos “pistoleiros do senhor Amaral Peixoto”. O antagonismo entre Tenório e o interventor foi duradouro, e marcou a política fluminense, especialmente na década de 1950.
Deputado federal
Com a erosão do Estado Novo e a criação dos partidos políticos em 1945, Tenório filiou-se à União Democrática Nacional (UDN), tornando-se ardoroso partidário da candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República. José Eduardo Prado Kelly, um dos líderes de seu antigo partido, a UPF, era agora um vulto eminente da UDN e o político mais próximo do candidato udenista.
Em 1947, Tenório foi eleito deputado à Assembleia Constituinte do estado do Rio na legenda da UDN, e em outubro de 1950 elegeu-se para a Câmara dos Deputados com a quarta votação entre os candidatos udenistas fluminenses.
Durante a legislatura iniciada em 1951, intensificou ao máximo seu combate a Vargas e Amaral Peixoto, que no mesmo pleito haviam sido reconduzidos à presidência da República e ao governo do estado do Rio. Da tribuna da Câmara, uniu-se aos udenistas que acusavam o governo de conceder favores financeiros ao jornal Última Hora através do Banco do Brasil, alinhando-se a todas as demais campanhas antigetulistas da época.
O nome de Tenório, que residia agora em uma casa fortificada — conhecida como “fortaleza” — em Caxias, ganhou nesse período ampla repercussão nacional, devido ao seu envolvimento em vários incidentes sensacionais. No primeiro deles, o delegado de polícia de Duque de Caxias, Albino Martins de Sousa Imparato, foi assassinado em agosto de 1953.
No dia 25 de agosto, Tenório e o prefeito do município, seu aliado, participavam de uma cerimônia cívica na cidade, quando sofreram um atentado a tiros — praticado, segundo Tenório, a mando de Imparato, agente do governo estadual no município com quem cultivava uma profunda rivalidade havia mais de dois anos. Tenório teve seu chapéu varado por uma bala. Três dias depois, aos primeiros minutos do dia 28, o delegado e um investigador que o acompanhava foram atingidos por uma rajada de metralhadora no interior de um veículo no centro de Caxias.
Imediatamente acusado de mandante do crime, Tenório se viu ameaçado de prisão pelo coronel Barcelos Feio, que retornara à Secretaria de Segurança do estado. Entretanto, quando a polícia fluminense pretendeu invadir sua residência, a UDN lhe prestou solidariedade, enviando os nomes mais destacados do partido para uma vigília no interior de sua “fortaleza”. Tenório ficou em liberdade, apesar de sua prisão preventiva ter sido decretada em diversas comarcas, e nada ficou apurado no inquérito instaurado para esclarecer o assassinato.
Outro episódio que contribuiu para sua notoriedade foi o patrocínio da defesa do tenente-aviador Jorge Alberto Franco Bandeira, acusado de matar Afrânio Arsênio de Lemos, cujo corpo foi encontrado no interior de um automóvel na Rua Sacopã, no Rio, em 6 de abril de 1952. Tenório havia-se bacharelado pela Faculdade Nacional de Direito, do Rio, e além da defesa de Bandeira atuou como advogado em diversas causas criminais.
Através da maciça cobertura da imprensa, o chamado “Crime do Sacopã” foi acompanhado com interesse por amplos setores da população. Tenório promoveu uma intensa campanha pública em defesa do tenente Bandeira, argumentando que os mandantes do crime seriam na verdade parentes de altas personalidades do governo Vargas. Em 1954, embora jamais se tenha admitido culpado, o tenente Bandeira foi condenado a 15 anos de prisão, dos quais cumpriu a metade, obtendo depois livramento condicional.
O prestígio de Tenório, que já vinha em ascensão, multiplicou-se a partir de fevereiro de 1954, quando fundou no Rio, juntamente com Hugo Baldessarini, o diário Luta Democrática. Desde a criação, o jornal associou-se à movimentação comandada por Carlos Lacerda, integrando-se à campanha antigetulista cujo recrudescimento acabaria conduzindo Vargas ao suicídio (24/8/1954). Adotando uma linguagem popular e valendo-se de apelos sensacionalistas, como o recurso a manchetes ambíguas que ficaram famosas, a Luta Democrática conquistou grande aceitação junto às camadas mais pobres da população carioca e fluminense, difundindo a imagem de Tenório sempre envolto em uma vasta capa preta que escondia a metralhadora apelidada “Lurdinha”, da qual nunca se separava. O jornal publicava diariamente a coluna “Escreve Tenório Cavalcanti”, na qual o deputado defendia sentidas reivindicações populares. A fama de Tenório cresceu, como o evidencia o filme Carnaval em Caxias, lançado em 1954, no qual o personagem Honório Boamorte, representado por José Lewgoy (na época o mais conhecido vilão do cinema nacional), inspirava-se ostensivamente em sua figura.
Em virtude de todos esses fatos, Tenório foi consolidando sua liderança política em Duque de Caxias, nas áreas vizinhas da Baixada Fluminense e no então Distrito Federal, o que se traduziu nas eleições de outubro de 1954, quando foi reeleito deputado federal na legenda da UDN com a maior votação do estado do Rio (42.060 votos).
Ligado ao setor mais radical da UDN, Tenório apoiou o governo de João Café Filho e opôs-se ao movimento de 11 de novembro de 1955. Liderado pelo general Henrique Teixeira Lott, ministro da Guerra até a véspera, o levante provocou a deposição dos presidentes Carlos Luz, em exercício, e Café Filho, licenciado. Lott e seus seguidores alegaram que a iniciativa teve o objetivo de deter uma conspiração golpista em preparo no governo e assegurar a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek. Nessa ocasião, da tribuna da Câmara, Tenório acusou o general Artur da Costa e Silva, então comandante em Caçapava (SP), de trair o grupo militar a que estava ligado e aderir às forças de Lott.
Manteve-se na oposição durante todo o governo Kubitschek, combatendo a política desenvolvimentista e a construção de Brasília, além de denunciar repetidas vezes a corrupção oficial. No período, participou das “caravanas da liberdade”, com as quais Carlos Lacerda percorreu o país quando lhe foi vedado o acesso ao rádio e à televisão. Lacerda relembrou mais tarde que, nessas campanhas, Tenório “entusiasmava as massas, contando aquelas histórias e com aquela capa… Afinal, era a primeira vez que ouviam um sujeito da UDN falando feito matuto e com ‘ar de povo’.” Segundo um de seus auxiliares da época, “Tenório era o verdadeiro PTB dentro da UDN”.
Ao mesmo tempo, não deixava de cultivar seu eleitorado caxiense. Em 1958, por ocasião das enchentes que assolaram o município, distribuiu terras aos flagelados e auxiliou-os na construção de novas casas. Ainda durante o governo Kubitschek, sua metralhadora, arma de uso militar, foi apreendida pelo Exército. Desde então, encontra-se no Museu do Batalhão de Guardas, no Rio.
No pleito de outubro de 1958, repetiu seu feito eleitoral, sendo novamente reconduzido à Câmara com a maior votação do estado (46.029 votos). Seu eleitorado, entretanto, crescera apenas 10% enquanto entre 1950 e 1954 aumentara mais de quatro vezes. Começou então a afastar-se de Carlos Lacerda, numa conjuntura em que amplas massas urbanas se deslocavam para a esquerda.
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