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Havia um grande homem no meio do caminho
“Para os escritores interessados pela verdade, a vida nunca foi, não é e nunca será simples: contra um prevalece a calúnia, contra o outro prevalece o duelo, o desastre arruinou a vida familiar daquele, a ruína, a miséria sem tréguas nem saída, o hospício ou a prisão deram cabo daquele outro. E na perfeita abastança, como no caso de Leão Tolstoi, é a própria consciência que mais amargamente ainda rói o peito por dentro”.
Essas são as palavras de Alexander Soljenítsin que foi, com toda certeza, um dos maiores escritores do século XX, um dos homens mais sábios que caminhou por entre nós e, por essa razão, mais do que suficiente, que nós deveríamos tirar algum tempo para deitar nossas vistas nas páginas de suas obras para que possamos, com o auxílio de suas palavras escritas com esmero, sermos retirados desse lodaçal espiritual em que nos encontramos no mundo contemporâneo.
Poderíamos, aqui, nessas breves linhas, contar inúmeras peripécias vividas por ele, mas, como você, amigo leitor, já pode imaginar, a escrevinhada acabaria ficando por demais extensa e, de certa forma, acabaria por furtar o prazer incomparável de ler as linhas delicadamente fiadas por Soljenítsin; por isso, procurarei apenas chamar a atenção para um ponto que, no meu entender, é a coluna central para termos um vislumbre, mesmo que distante, da grandeza de tudo que esse senhor escreveu e da pessoa singular que ele é.
Soljenítsin, como é de conhecimento de todos, lutou na Segunda Guerra Mundial contra o exército alemão. Não apenas isso. Ele foi duas vezes condecorado pela sua atuação na frente de batalha. Porém, todavia e, entretanto, faltando pouco tempo para a guerra terminar, alguns agentes da NKVD prenderam-no e enviaram-no para um campo de concentração soviético, para um GULAG. Seu crime: ter feito algumas alusões críticas a Joseph Stalin em uma correspondência para um amigo, conforme o mesmo nos conta em seu livro “O Carvalho e o Bezerro”.
Isso mesmo. Sua correspondência havia sido violada pelos agentes da NKVD, sua privacidade foi vilipendiada e, por isso, ele acabou sendo enquadrado no artigo 58 do código penal soviético por estar supostamente realizando “propaganda anti-soviética”. É mole ou quer mais. Tem mais sim senhor.
Sua pena foi de oito anos de trabalhos forçados, seguidos de um exílio interno perpétuo. Ou seja: teria de viver para o resto de sua vida em algum canto isolado da URSS, após sua “estadia” nos campos de concentração soviéticos, sendo monitorado de perto e recebendo visitas periódicas para revistar sua morada insólita.
Em 1953 ele já estava cumprindo sua pena de exílio interno e, para ajudá-lo mais um cadinho, o homem estava com um câncer agressivo e terminal, conforme o mesmo nos conta em seu livro “Pavilhão dos cancerosos”. E você achava que a sua vida estava osso.
Segundo ele, em outubro de 1953, tudo o fazia crer que estava vivendo os seus últimos meses. Na verdade, segundo os médicos que o diagnosticaram – que também haviam sido condenados a um exílio interno – teriam confirmado para nosso amado escritor que ele teria apenas mais umas três semanas de vida.
Esse foi um momento terrível para ele. Terrível não apenas pelo fato de que ele estava morrendo. Não. Terrível porque durante todos os anos que ele esteve preso nos campos de concentração soviéticos ele escreveu inúmeras obras; obras as quais ele jamais iria ter a felicidade de poder publicar.
E seus amigos não poderiam num futuro distante publicar os seus manuscritos porque eles não existiam. É isso mesmo que você acabou de ler. Para evitar que os guardas pegassem o que ele estava escrevendo, logo após ter escrito uma página, mais do que depressa, ele procurava memorizar o que acabara de escrever e queimava o mais rápido possível para não deixar nenhum vestígio.
Todas as obras que ele havia produzido em sua estada nos GULAGS ele as tinha na memória e, por isso, iriam se perder para todo o sempre. Tudo o que tinha dado sentido à sua vida até então iria definhar e desaparecer da face da terra junto com sua morte.
E em virtude do sistema soviético, ele não podia, como o mesmo nos diz, gritar para que alguém pegasse os seus escritos para salvá-los e, quem sabe, um dia, uma alma generosa e corajosa pudesse publicá-los. Sem chance.
De mais a mais, praticamente todos os seus amigos também estavam em campos de concentração. Sua mãe estava morta e sua mulher havia se casado com outro homem. [Bah! Que fase].
Abre parêntese: mesmo assim ele chamou sua ex-mulher para se despedir dela, pensando que poderia entregar para a mesma os seus escritos, os poucos que ele conseguiu escrever, junto com um adeus. Mas ela não foi vê-lo, logo, não rolou. Fecha parêntese.
Mesmo assim ele continuou escrevendo noite e dia nas horas que podia, mesmo sofrendo terrivelmente com as dores que, àquela altura do câncer, não eram nem um pouco suaves.
Escrevia em pequenos pedaços de papel com letra miudinha e enrolava-os na forma de canudinhos e os guardava numa garrafa que ele escondia no quintal de sua casa.
Na véspera do ano novo de 1954 ele partiu para Tachkent para morrer em paz na companhia do seu tumor, maligno e violento, abandonado e sem esperança alguma. Pois é. Acontece que ele não morreu. Isso mesmo. Não rolou não. O câncer simplesmente sumiu. Um milagre aconteceu.
E diante de uma graça desse tamanho – pois ele não tinha como compreender o que aconteceu doutra forma – ele entendeu que teria que dedicar toda a sua vida, sua nova vida que lhe foi dada, para dizer em alto e bom tom tudo o que a morte iria calar, mas não calou. E foi o que ele fez até ter sido levado para o céu em agosto de 2008, aos 89 anos de idade.
Soljenítsin, de forma ampla, com sua obra e com sua vida nos mostra qual sentido a ação humana pode ter em uma época como a nossa, uma época de absurdidade cruel. Uma época triste que, com sua forma enfadonha de ser, apresenta-se como sendo o fim definitivo a ser atingido pela humanidade.
O autor do “Arquipélago Gulag” nos lembra que o mundo moderno está sofrendo de uma enfermidade atroz que é a incapacidade de nos comunicar verdadeiramente. Nós perdemos a real capacidade de dialogar e, com essa perda, foi-se a piedade e bem como a caridade que, com o tempo, foram desbotando em nossos corações.
Vivemos, segundo ele, num reino de mentira, de desintegração da comunidade humana onde a justiça e bem como a consciência individual parece que estão eclipsando no horizonte para boa parte dos homens do nosso tempo.
Soljenítsin por meio de sua obra e de sua vida, nos ensina que quando somos submetidos ao “aplainamento” da morte, nós podemos redescobrir o real significado da comunicação e, por isso, ele nos convida através de suas linhas a reconhecermos sob os sedimentos sem fim dos entulhos emocionais e existenciais da nossa vida adulta, as incontáveis formas de alienação que tomam conta de nossa alma e que desorientam nossa percepção da vida, convidando-nos a mergulhar de cabeça na água viva de um novo batismo para, se Deus nos permitir, reavivarmos o poder de comunicação de nossa linguagem, da nossa fala a muito corrompida pelos maus usos que a ela é dado por toda ordem de ideologias.
Enfim, fica a dica: leiamos as obras do autor que sobreviveu aos tormentos dos GULAGS para que possamos nos libertar das ideologias que agrilhoaram nossa alma e encarceram a mentalidade de nossa época.
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