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Negacionismo, o mal do momento

28/04/2021
Negacionismo, o mal do momento

A morte é encontro marcado. Não é, contudo, nosso encontro mais importante. O relevante da vida, ainda que soe contraditório, está no saber que se vai morrer, para, até então, bem cuidar do transcurso da vida. Se não se fugirá ao encontro, resta ao “cadáver adiado” viver “a loucura que é o homem”. Isso me veio de D. Sebastião, Rei de Portugal (Fernando Pessoa).

Dizendo de outro modo: morrer é constitutivo do estar vivo, então, é de se lidar com essa realidade sem se paralisar diante dela. Nada de lhe facilitar o lance. Conheço o imperativo. Postergo-o. Não o adio, todavia, para só esticar o tempo, mas para usufruir a vida, que é o encontro fundamental.

Agora, lutar contra um fato não é negá-lo. Negar a realidade não a elide. Se a nego, nem consigo dela me defender. Os negacionistas da peste que assola o mundo recusam a mortalidade do coronavírus. Expõem-se, matam-se; contaminam-nos com sua exposição ou sua morte.

“Negacionismo é a escolha de negar a realidade como forma de escapar de uma verdade desconfortável. Trata-se da recusa em aceitar uma realidade empiricamente verificável, sendo essencialmente uma ação que não possui validação de um evento ou experiência histórica” (Wikipédia).

Psiquicamente, temos sistemas de defesa da ideia de morte, deixando de levá-la na devida conta. Alguns preferem não falar nisso. Muitos se põem acima dos comuns mortais: é mais forte, é protegido de “deus”, tem o corpo fechado, tem passado de atleta. “É uma gripezinha que não me pega”. Preocupa-me quem não se preocupa. Cada despreocupado é meu possível assassino.

Os despreocupados, no fundo, angustiados, sentem medo, então, entram num “fazer de conta” escapatório. “Não por acaso há tanto negacionismo. Encontrar com aquilo do qual não queremos saber, de modo tão rotineiro assim não é fácil, melhor não saber disso – o que não quer dizer que não se saiba mesmo” (Entre amores e análises no digital: o olhar de Ana Suy, por Henrique Paes, Deusateu, 19abr21).

Sociologicamente, “vivemos uma crise da verdade. Trasvestido de ‘polêmicas’, o negacionismo ganha espaço e coloca em xeque preceitos já sedimentados pela ciência no mundo. A problemática da veracidade é irrigada por ingredientes presentes nas estratégias dos ‘mercadores da dúvida’. Seus agentes procuram uma falsa simetria na argumentação científica e criam teorias conspiratórias para explicar o inexplicável” (O perigo do pensamento negacionista, Sonia Pittigliani, Telavita, editado).

Teoria da conspiração “é uma hipótese explicativa ou especulativa que sugere tramas de pessoas ou organizações para causar ou acobertar, por meio de planejamento secreto e de ação deliberada, uma situação ou evento tipicamente considerado ilegal ou prejudicial, muitas vezes produzindo suposições que

contrariam a compreensão predominante dos eventos históricos ou simplesmente fatos” (Wikipédia, editado).

As articulações negacionistas com seus “argumentos” conspiratórios prestam-se à manipulação ideológica, sendo modo de atuação principalmente de organizações ou governos reacionários, justificando retrocessos sociais e científicos bem como afirmando religiosidades, costumes vencidos e autoritarismos.

Situações de comoção social costumam fortalecer grupos negacionistas e teses conspiratórias. Não obstante a limitação de meios técnicos e suporte teórico para validar suas concepções, a sua capacidade de produzir mentiras ou pós-verdades conquista adeptos e provoca danos consideráveis.

As mentiras, ou fake news, são falsificações que restam desmentidas, porém o contradito não suprime a confusão provocada, sobrando um rastro de desinformação sobre a realidade. A pós-verdade é uma mentira sofisticada. Ela conforma fatos, interpretando-os à imagem e semelhança de crenças e vieses ideológicos, contornando a objetividade científica.

Exemplos de mentiras alçadas a pós-verdades na crise de saúde que vivemos são a associação da ciência ao comunismo (uma ideologia, ademais, bastante debilitada) e a assombração da vacina, atribuindo-lhe risco de alteração genética (o que seria impossível, mesmo que se objetivasse tal resultado).

Os negacionistas são o pior mal do momento. Pretextando com o direito constitucional de ir e vir, autorizam-se a circular sem cautelas (recusam as medidas higiênicas antivírus), fazendo-se condutores do coronavírus, infectando os locais por onde transitam, incluindo suas famílias.

Preliminarmente, não cabe o pretexto da proteção constitucional. “As normas de direito fundamentais possuem forte conteúdo axiológico e são de grande importância, por essa razão possuem natureza de princípios. Os princípios são o centro do Direito Constitucional em sua fase pós-positivista. Bastante comum ocorrer choque entre direitos fundamentais, o que é solucionado por técnicas de ponderação, operacionalizadas através do princípio da proporcionalidade” (Lorena Duarte Lopes Maia, Âmbito Jurídico, 01mar12, editado).

Quer dizer: os direitos (ou normas jurídicas) são vários, e quando dois ou mais direitos colidem ou se pressionam reciprocamente numa mesma circunstância, deve haver ponderação do Estado-juiz, o que é feito aplicando-se o princípio da proporcionalidade.

A presença do juiz não é, como gritam os negacionistas, uma invasão comunista na liberdade de ir e vir. Antes, pelo contrário, a presença do juiz é a garantia do lema da Revolução Francesa – liberdade, igualdade, fraternidade –, a base que resume o Estado Democrático Liberal de Direito.

Fraternidade é a harmonia (relação de pertinência) entre os envolvidos em uma mesma causa. A causa que nos requer a todos é a da vida (a morte que espere).

Os que se recusam ao gesto solidário dos cuidados com a saúde pública nos causam elevado custo social, emocional, financeiro. Sua prepotência obscurantista (atitude, doutrina, política ou religião que se opõe à difusão dos conhecimentos científicos entre as classes populares, Houaiss) nos deixou um rastro de mortes que assusta o mundo.

As más notícias estão em todos os meios de comunicação; os negacionistas se esforçam em superá-las com suas estupidezes. Têm campo fértil para suas maldades: “As sociedades desiguais economicamente tendem a desconfiar da ciência, pois acabam não tendo acesso, principalmente, à educação de qualidade.

Alguns privilegiados podemos nos informar com o mundo em que prevalece a racionalidade científica. A maior riqueza da ciência não são as certezas, mas sim o modo qualificado de tratar as dúvidas. Incertezas, perguntas, problemas e questões são matéria-prima da ciência. Dessas dúvidas é que se extraem as certezas” (Pittigliani, Op. cit., editado).

Com alguma anamnese de nós mesmos, formei uma certeza: bem investigados os negacionistas, seguramente temos um sintoma; algumas causas, relatei. Haverá muitas outras mais, inclusive interesses escusos. Quem tem noção do que passamos tem um dever cívico: colaborar com o esclarecimento geral.

É Doutor em Direito pela UFSC. Psicanalista e Jornalista