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Conto, reconto ou respeito?
Não é de agora que se fazem planos para alterar a linguagem de autores clássicos. Há alguns anos li na imprensa algo sobre substituir alguns termos usados por Machado de Assis, a fim de torná-lo mais acessível aos jovens. A ideia é tão esdrúxula que acho que não foi adiante, felizmente. Também há algum tempo falou-se em evitar a leitura dos contos de fadas tradicionais pelas ou para as crianças, alegando que alguns eram tristes, ou continham violência, ou provocavam medo, etc, etc. (Vale lembrar que os contos de fadas não precisam necessariamente ter fadas, mas sempre imaginação e fantasia.) Tais ideias ainda são defendidas até por pessoas ligadas ao universo educacional e literário.
No entanto, as justificativas para tal pensamento não se sustentam. Os contos de fadas tradicionais, especialmente os compilados por Charles Perrault e os Irmãos Grimm e os criados por Andersen, falam de fadas, príncipes, princesas, mas também de bruxas, dragões, monstros.Como afirma Julia Montoia de Lima, “Trata-se de um mundo encantado, cheio de beleza, mas ao mesmo tempo bastante cruel e amedrontador”. Mas… não será assim a nossa realidade, seja no passado do “era uma vez, num tempo longínquo”, seja no século 21 – realidade agora mostrada pela TV, na maioria das vezes,sem as metáforas e a imaginação que permeiam tais contos? E a autora continua: “Em nossos tempos politicamente corretos e super protetores, tendemos muitas vezes a querer retirar dessas histórias os elementos que amedrontam as crianças, no entanto, são justamente desses aspectos que elas necessitam para abordar os enigmas do mundo e do desejo”. Por isso mesmo, os contos de fadas “se farão presentes sempre: como mote para novas criações, como consolo para nossas angústias, como aporte para nossa imaginação, nos fazendo leitores”, como diz a especialista Sueli de Souza Cagneti.
Foi, pois, com preocupação que ouvi a notícia de que o MEC lançou uma coleção de clássicos infantis, ou melhor, de “recontos”, como estão sendo chamados. Trata-se da coleção “Conta pra mim”, onde os contos (ou recontos) são creditados a autores brasileiros, sem dar o devido crédito aos autores originais, num total desrespeito a estes, bem como à literatura infantil brasileira, vencedora por mais de uma vez do Prêmio Hans Christian Andersen, o Nobel da literatura para crianças. Para Marisa Lajolo, teórica da Literatura Infantil, a citada coleção traz adaptações que ela classifica como “péssimas”, ignorando a tradição da nossa literatura para crianças.E isso vai além de questões políticas. Não cabe à direita nem à esquerda alterar a linguagem, o enredo, ou as personagens de nenhuma obra publicada, seja ela para o público infantil ou adulto. Onde fica o respeito aos escritores? Não é porque Perrault, os Irmãos Grimm ou Andersen viveram entre os séculos XVII e XIX que se tem o direito de desrespeitá-los.
Mas esse não é o único problema. A questão de fundo é o desvalor dado à cultura e à obra literária. Livros infantis são, antes de tudo, LITERATURA. E passar valores, normas de conduta, doutrinar não é, em absoluto, a sua finalidade.Ou seja, há algo muito equivocado na forma como a cultura e a literatura estão sendo vistas; neste caso específico, como meio de atuar sobre o pensamento infantil, com mensagens morais conservadoras explícitas, não levando em conta o merecido respeito às crianças e à sua literatura.
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