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Lampião, rei dos cangaceiros
Os dias eram quase iguais. As mesmas coisas. Nada difere dos dias anteriores, mas, o amanhecer daquela madrugada, não foi como tantas outras. Depois de um dia de sol que declinava no horizonte, com seus raios nas águas do rio São Francisco, sob o reflexo, complementava o cenário da beleza natural de uma tarde moribunda.
O rio, o “Velho Chico”, dividia os representantes de duas forças, teoricamente, antagônicas: o “Capitão” Virgulino Ferreira da Silva, o famigerado Lampião e o tenente João Bezerra, que se encontrava em Piranhas, Alagoas.
Lampião, com seu bando, do outro lado do rio, estavam acampados na Grota do Angico, em Poço Redondo, no estado de Sergipe, a espera do cangaceiro Cristino Gomes da Silva Cleto, eternizado pelo epíteto de Corisco, o “Diabo Louro”.
O “Rei do Cangaço” enviou um recado para o “Diabo Louro”, em bilhete escrito a punho, para um encontro na Grota do Angico, pois precisavam se juntar para atacar a força volante da Bahia, sob o comando de José Rufino, nos seguintes termos: “Compadre Cristino, venha urgente, precisamos ‘dar uma lição’ no negro Zé Rufino, que ele está querendo passar de pato a ganso”.
O rosicler no céu anunciava o lusco-fusco que, aos poucos, ia sendo substituído pelo pretume noturno, sob as súbitas e esporádicas nuvens de chuvas que estavam sempre a ocorrer, durante o dia.
A Grota do Angico, onde estava Lampião, é longe das moradas, razão pela qual não se ouve o mugir de uma rês e nem o bodejar de um “pai-de-chiqueiro”. Ouve-se, apenas, o assustador e inesperado ruflar de asas nos voos das aves de arribação e das canoras. A Coruja solitária, ao longe, piava. Era prenúncio de morte na linguagem da superstição.
Lampião ia morrer! Não se atribua a perda de seus pais, como motivo principal de sua vida erradia. Muito antes de sua mãe, Maria Lopes, falecer de infarto e dezoito dias depois ser assassinado o seu pai, José Ferreira, Lampião já era cangaceiro das hostes de Sebastião Pereira, o “Sinhô” Pereira. O motivo de Virgulino entrar para o cangaço, com seus irmãos, teve origem nas intrigas com Zé Saturnino, de quem era vizinho de propriedade, em Serra Talhada-PE.
Aconselhado pelo Padre Cícero, em 1922 e com sérios problemas reumáticos, “Sinhô” Pereira, abandonaria o cangaço e o posto de chefe do bando de cangaceiros, transferindo a chefia para Virgulino Ferreira (Lampião) que, mais tarde, passaria a ser o cangaceiro mais temido e Rei do Cangaço.
O Capitão Virgulino, na Grota do Angico, estava impaciente naquele refúgio, porque “Corisco” demorava a chegar e, como se estivesse sentindo maus presságios, impaciente, andava de um lado para o outro e auto se indagava: “compadre Cristino há de chegar! Por que se demora tanto, será que não recebeu meu recado?”.
Corisco, o Diabo Louro, o esperado de Lampião, estava com o seu bando, há dois dias, na outra margem do rio, bem perto de Lampião, mas, não fez a travessia para onde se daria o encontro, porque havia grande movimento de polícia volante, no local.
O historiador, então deputado estadual, Inácio Loiola, dentre outras versões divergentes, reafirma que Lampião esperava a chegada de “Corisco”, para anunciar, naquele dia, que iria abandonar o cangaço. Particularmente, comungo desta versão, por várias razões e pelo depoimento do cangaceiro sobrevivente, Manoel Dantas Loiola, o “Candeeiro”, e que veremos mais adiante.
Maria Bonita, sua mulher, horas antes de sua morte, reforça a ideia de que Lampião abandonaria o cangaço, quando em conversa com a cangaceira Sila, mulher do cangaceiro Zé Sereno, confidenciou as pretensões de abandonar o cangaço: “Sila, vivo tão chateada desta vida, sem ter pouso certo, sempre fugindo da polícia…”. Apenas o silêncio da noite registrava essa conversa, pois, estavam um pouco afastadas do grupo, em cima de uma pedra, onde também fumavam.
Naquele momento de confabulação, Sila vê uma luz que apaga e acende nos arbustos da caatinga e entre as duas pairam dúvidas, se a luz era de “Vaga-Lume” ou de lanterna. Precavida, Maria Bonita sugere a Sila, o recolhimento ao rancho, sem falar nada para Lampião sobre a luz, talvez porque antes haviam brigado feio, pelo fato de Maria, em Propriá, ter cortado o cabelo, sem o seu consentimento.
Maria Bonita teria ido ao médico, em Propriá, disfarçadamente, com a ajuda de um poderoso sergipano, o coronel Hercílio Brito, para fazer um tratamento médico, porque estava escarrando sangue, talvez acometida de tuberculose ou por sequelas de quando foi alvejada por um tiro na Serra do Catimbau, em Garanhuns-PE.
Lampião sempre se sentia seguro em Sergipe, onde tinha a proteção do governador Heronildes de Carvalho e de seu pai, Antonio Caixeiro, que o acolhia, com seu bando, em suas fazendas. Mas, Heronildes de Carvalho, negou a um repórter esta relação amistosa, negando, também, que houvesse recebido de presente uma pistola Parabellum, do rei do cangaço.
Ainda sobre a ideia de que Lampião queria anunciar para “Corisco” a desistência do cangaço, pode se constatar pelo depoimento do cangaceiro “Candeeiro”, quando afirma ter visto Lampião dizer que não estava suportando tanta bala: “se vou a Pernambuco, é bala; se vou para Alagoas, é bala; se vou para Sergipe é bala; se vou para a Bahia, é bala” e concluiu dizendo que iria embora para Minas Gerais, e quem não quisesse o acompanhar, poderia ficar. Candeeiro complementou esta afirmação, apontando com o dedo em direção ao rio São Francisco: “ele falou isso lá na beira do rio, quando a gente chegava aqui”.
O sargento Aniceto Rodrigues, com sua equipe de policia volante, estava em Piranhas e o tenente João Bezerra estava com outra equipe em Pedra de Delmiro (hoje, cidade de Delmiro Gouveia), quando recebe um telegrama enigmático de Aniceto: “Tenente Bezerra, tem boi no pasto, venha urgente”.
Pedro de Candido, era o coiteiro de mais confiança de Lampião, comprava mantimentos para os cangaceiros, mas, o vaqueiro Joca Bernardo, não queria vender todos os queijos, alegando que já estavam vendidos ao Juiz de Direito de Pão de Açúcar, mesmo assim, Pedro, sob o protesto de Joca, levou todos os queijos para Lampião.
As volantes do sargento Aniceto e do tenente João Bezerra, este que já havia chegado de Pedra de Delmiro, foram informados por Joca Bernardo, que Pedro de Candido havia comprado grande quantidade de queijo para Lampião e, portanto, este sabia de seu esconderijo.
Pedro de Candido, pressionado pela lâmina do punhal de João Bezerra e ameaçado de morte, balbuciou: “não me mate, eu digo onde está Lampião!”
O trajeto fluvial das volantes e dos irmãos coiteiros, Pedro de Candido e Durval Rosa, de Piranhas para a grota do Angico, seria feito por canoas. Naquela madrugada de quinta feira do dia 28 de julho de 1938, as polícias de Chico Ferreira, Aniceto e João Bezerra, depois de aportarem as canoas à margem do rio São Francisco, caminhavam pela caatinga sob a orientação dos “cicerones” Pedro de Cândido e seu irmão, Durval Rosa, eles significavam a morte caminhando em direção a Lampião, e a cada passo dado, reduziam-se as chances de defesa e o tempo de vida do Rei do Cangaço.
A volante, talvez, para se sentir encorajada a enfrentar aquela fera do cangaço ou espantar o frio da chuva fina que caia naquela madrugada, bebia muita cachaça. Lampião ia morrer! Pedro de Cândido sabia da localização das barracas e diminuindo a marcha, vociferou para integrantes e Bezerra, chefe da volante: “falem baixo, estamos bem perto e eles podem nos ouvir”.
A neblina foi baixando lentamente e começaram a surgir, em forma triangular, os picos das barracas as quais, identificadas pelo coiteiro Pedro de Cândido, com o dedo indicador em riste, falando baixo, apontava para João Bezerra: “esta é a barraca onde está Lampião e Maria Bonita, aquela é a de Luiz Pedro…”, este cangaceiro que havia matado, acidentalmente, o irmão de Lampião, Antonio Ferreira, com um tiro de fuzil, sendo perdoado por Lampião, prometeu que morreria ao lado do Rei do Cangaço.
O cangaceiro de nome Amoroso, com apenas 16 anos de idade, antes das cinco horas da manhã, era um dos poucos que estavam acordados na Grota do Angico e, ao dirigir-se ao poço, em busca de água para o preparo do café, recebe um tiro de um policial volante, que erra o alvo, a menos de quatro metros de distância.
Na sequência de tiros, que durou aproximadamente quinze minutos, de um grupo de trinta e sete cangaceiros, morreram apenas onze: Lampião, Maria Bonita, Luiz Pedro, Enedina, Colchete, Mergulhão, Elétrico, Quinta-Feira, Marcela, Alecrim e Moeda. Todos foram decapitados e suas cabeças expostas em praças públicas, depois no museu Nina Rodrigues, na Bahia, permanecendo expostas, por três décadas.
A grande maioria de cangaceiros estava ainda dormindo e não teve tempo de reagir, sendo fantasiosa a versão de que houve um confronto e reação do Rei do Cangaço. Lampião não disparou um tiro sequer. A volante teve uma baixa e um ferido. No local faleceu soldado Adrião Pedro de Souza, que teria sido morto pelo cangaceiro Balão e saindo ferido na coxa, o tenente João Bezerra, supostamente, pelo tiro do cangaceiro Zé Sereno.
Os cangaceiros, em alvoroço, despertados pelos espocar das balas, só trataram de fugir e, a rigor, não houve confronto, sendo a versão mais consentânea, a de que Bezerra foi vítima de bala que, acidentalmente, ricocheteou ou resvalou nas pedras e Adrião foi morto por bala perdida no fogo cruzado da própria policia ou de algum cangaceiro que atirava a esmo, quando batia em retirada.
O “Diabo Louro” que estava no povoado de Entremontes, do outro lado do rio, ouvia os tiros sem nada poder fazer em defesa de Lampião e seu grupo. Ao saber da morte do Rei do Cangaço, marchou para a casa de seu coiteiro, Joca Bernardo e este, para não morrer, alegou que o vaqueiro Domingos Ventura, teria informado à policia, o esconderijo de Lampião. Era uma sentença de mortes. Aconteceria, portanto, a maior injustiça do cangaço.
Cristino Gomes, o Corisco, marchava com seu grupo para a casa de Domingos Ventura, enquanto Dadá, em um jumento lerdo, ficava sempre para trás e, quando chegou à casa de Domingos, seu marido, o Diabo Louro, já havia assassinado Joca, sua mulher e duas filhas, cortando-lhes as cabeças. Por um momento, Dadá se revolta porque gostava das meninas e pede para ele não matar os dois irmãos que restavam da família. Em não sendo atendida, Dadá saca de sua “parabellum” e aponta para a cabeça de Corisco, desta forma, demovendo-o de dar seguimento àquela ideia macabra de chacinar toda família.
Corisco era alagoano de Matinha de Água Branca e raptou Sérgia Ribeiro, a Dadá, aos treze anos de idade, que se tornou na mulher mais valente e mais forte do Cangaço, a única que participava na linha de frente atirando nos confrontos com a polícia.
Muito paciente, Corisco, ensinou Dadá a ler e escrever. O que era, para ela, uma convivência de ódio, amadureceu entre os tiroteios e os perigos da caatinga, transformando-se em uma história de amor.
A morte de Lampião foi noticiada pela imprensa e logo o Brasil e, principalmente, o Nordeste, através da literatura de cordel, que era o meio de comunicação mais eficiente da época, tomaram conhecimento da morte do maior bandoleiro das caatingas, de todos os tempos.
Não era, definitivamente, o fim de tudo. Corisco, sozinho, sem liderança, sem poder atirar, aleijado dos braços, apenas na companhia de sua amada Dadá, não se entregaria, como, de fato, não se entregou.
O cangaço continuaria até o dia 25 de maio de 1940, na fazenda Cavaco, em Barra dos Mendes, na Bahia, quando o tenente Zé Rufino, sabendo que Corisco não portava mais armas porque estava aleijado dos dois braços, o feriu mortalmente, apenas Dadá sobreviveu com um tiro na perna que, por causa da gangrena, foi amputada, passando a morar em Salvador, até o ano de 1994, quando faleceu.
Maceió, 24 de julho de 2020
(*) Silvio Sapucaia é advogado
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