Brasil
O que será da democracia brasileira em 2020?
Quando Jair Messias Bolsonaro recebeu, no dia 1º de janeiro de 2019, a faixa presidencial das mãos de Michel Temer, analistas no Brasil e no mundo se dividiram basicamente entre duas previsões.
Uns diziam que Bolsonaro se tornaria menos radical quando assumisse a presidência, e outros esperavam uma guinada forte para a direita, transformando o Brasil num país mais autoritário e menos democrático.
Mas o que aconteceu ao longo de 2019 foi diferente: não se confirmaram nem a primeira previsão, nem a segunda, avalia o cientista político Marco Aurélio Nogueira.
“A expetativa que se tinha era de que o cargo de presidente iria suavizar um pouco a postura dele. Mas isso não aconteceu, muito pelo contrário”, comenta.
Depois de muitos tuítes e falas presidenciais bem controversas, Nogueira prefere chamar 2019 de “um ano de muitas coisas bizarras e poucas coisas concretas”.
As poucas realizações, como a reforma da previdência, foram frutos do desempenho congressional. “A reforma passou porque a Câmara se movimentou de forma eficiente. Não pode ser colocado como troféu do governo. Mas o resto só foi desgraça e desastre.”
Para Nogueira, as áreas de cultura, meio ambiente e educação foram “um horror, uma pasmaceira obscurantista e reacionária”, e o desempenho do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, “caricato”.
Mas há um risco nisso para a democracia brasileira? “Não diria que a democracia brasileira está em risco, mas seguramente ela não está sendo qualificada do modo que deveria, levando em conta as caraterísticas da sociedade brasileira com seu passado autoritário.”
Graças à fraqueza do governo, o Brasil está blindado contra um avanço autoritário, avalia Nogueira. “O governo Bolsonaro não tem força suficiente para acabar com a democracia. Não vai fazer uma guinada autoritária no plano institucional.”
Mas isso não significa que não haverá danos à democracia. “Bolsonaro pode, como está sendo feito, intoxicar a ideia de democracia, de coisas que vão desvalorizando aos olhos da população.”
“É como se o governo reagisse para retirar da população uma expectativa positiva em relação à democracia: o combate à política, o esforço permanente de crítica à educação livre, as ações contra a cultura, tudo isso acaba por soltar na sociedade uma espécie de toxina que vai minando a confiança das pessoas na democracia.”
Para Nogueira, essa foi a tendência de 2019 e ela deve continuar. Mas há fatores que, de repente, podem mudar esse cenário. As as eleições municipais de 2020 seriam um deles, porque, segundo o analista, podem “trazer derrotas para o governo e aliados”, ainda mais com as incertezas que rodeiam a criação do partido bolsonarista Aliança pelo Brasil.
Um segundo fator seria a organização da oposição: “Quem sabe a mistura de democratas desarticuladas e o desempenho eleitoral não produz uma química positiva para o país. É mais uma torcida do que um diagnóstico meu”, comenta.
O cientista político Jairo Nicolau lembra que muitos analistas acreditavam que o Brasil se transformaria, sob o presidente Bolsonaro, numa “grande Hungria”, com Bolsonaro como um “Viktor Orbán dos trópicos”. “Internacionalmente, ele conseguiu construir essa imagem”, avalia o pesquisador do Centro de Pesquisa e História Contemporânea do Brasil, ligado à Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Mas no plano nacional, as coisas são diferentes.
“O que o presidente e os ministros falam é uma coisa. Mas na prática, temos ações muito menos antidemocráticas do que foi a promessa ou o temor da oposição. É o grande ponto positivo do governo.”
“A retórica continua terrível, antidemocrática e ameaçadora”, diz Nicolau. Mas, na prática, o governo efetivamente não fez nada “para que o consideremos um governo de extrema direita ou antidemocrático”.
O ano de 2019 trouxe uma surpreendente fraqueza da figura presidencial, avalia o cientista político e professor do Insper Carlos Melo. Para começar, há uma falta de base de poder do governo dentro do Congresso, tanto para aprovar leis como, também, se proteger de um eventual impeachment. “Hoje, nem um partido o presidente tem”, comenta.
“O governo está descoberto no Congresso e depende muito fortemente das lideranças do Congresso Nacional, especialmente de Rodrigo Maia”, avalia Melo.
A importância do presidente da Câmara aumentou muito, enquanto a figura de Bolsonaro perdeu força. “Maia mostra uma postura reformista e de freios e contrapesos às loucuras do Poder Executivo. O que saiu de reforma, saiu por causa do Rodrigo Maia, e não do presidente da República.”
A fraqueza de Bolsonaro se mostrou, segundo Melo, no grande número de medidas provisórias e vetos do presidente derrubados. O cientista vê o presidente “apático e alheio às questões do Congresso e de uma agenda econômica”. “O governo só não ficou numa situação pior porque ele acabou sendo blindado pelas lideranças do Congresso e por setores da economia também.”
Em vez de enfraquecer a democracia brasileira, avaliam analistas, o governo mergulhou em crises, fragilizando a figura forte do presidente, enquanto o Legislativo ganha força.
“As confusões são a marca do governo”, resume Melo. Ele fala de um “presidencialismo em transe”, tanto no sentido da palavra “transe” como “confusão” como, também, de “transição para algo novo, em virtude da fragilidade do Executivo”. Ao invés de um enfraquecimento democrático, principalmente do Poder Legislativo, observa-se um enfraquecimento do Poder Executivo, blindando a democracia brasileira de tendências autoritárias.
Tal enfraquecimento do Executivo se vê também na política externa, onde setores da economia pressionaram o governo a mudar a postura, como nas relações com o novo governo argentino e diante da China.
“Isso significa que a palavra do presidente não conta muito, que ele se vê obrigado a morder a língua. Não é um pragmatismo do presidente da República, mas um pragmatismo de setores da economia que forçam o presidente a voltar atrás nas suas declarações.” Assim, há algo positivo como efeito colateral de todos os erros cometidos, avalia Melo.
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