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‘Candidatos vencem eleições prometendo um passado idealizado’, diz Pascal Lamy

03/11/2018

O fracasso de políticos pelo mundo em garantir progresso econômico e um governo limpo, aliado a velocidade tecnológica e desconfiança nas instituições, abriu espaço para o surgimento de líderes populistas. Quem faz o alerta é Pascal Lamy, uma das principais referências mundiais no comércio, ex-comissário da UE e ex-diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC). Para ele, não há dúvidas: as democracias estão em perigo.

Em entrevista exclusiva ao jornal O Estado de S. Paulo, o francês também deixa claro que líderes têm vencido eleições prometendo um “passado idealizado”. “Sabíamos que Hitler e Mussolini foram de alguma forma eleitos e acreditávamos que a vacina tinha funcionado. Mas não é o caso quando olhamos para deslizes perigosos ou sinais na Turquia, Hungria, Filipinas ou mesmo no Brasil”, alertou.

Lamy, que por décadas fez seu nome como um defensor do multilateralismo, também faz um alerta sobre a situação da crise entre China e EUA. “Ou eles cooperam e o mundo será um lugar melhor, ou um EUA nacionalista vai querer agressivamente conter a China, que vai se desglobalizar como reação, e o mundo vai ficar um lugar mais perigoso”, alertou. Leia os principais trechos da entrevista:

Por décadas, o sistema multilateral, com suas regras, parecia garantido. Hoje, ele está duramente questionado. O sistema fracassou? O que está na base desse questionamento?

O sistema baseado em regras multilaterais ajudou a abrir o comércio e promover o crescimento na maioria das economias, inclusive no Brasil, por muitos anos. Agora, está sob ataque pelos EUA, que elegeram em 2016 um presidente que fez sua campanha numa plataforma mercantilista. Em outros lugares, o protecionismo é frequentemente, mas nem sempre, parte do discurso populista nacional. As razões para essa nova situação são tanto domésticas quanto internacional. Os sistemas sociais domésticos nos países desenvolvidos foram incapazes de lidar de forma adequada com as dores que a globalização traz com suas eficiências e maior concorrência, portanto mexendo com os sistemas de produção. Desigualdades também aumentaram muito. Tanto pelo fato de sistemas de bem-estar serem fracos – como nos EUA – ou por conta de seu encolhimento depois da crise de 2008, na Europa. No nível internacional, os livros de regras da OMC não foram ajustados às
grandes mudanças durante as últimas décadas, inclusive, mas não só, com o surgimento rápido da China com seu sistema de capitalismo de Estado. A velha forma de equiparar o jogo do comércio está fora de sintonia com as realidades do século 21. Se o ponto de Trump é de que a OMC precisa de reforma, ele está certo.

A OMC está preparada para dar uma resposta à guerra comercial que está em andamento?

A OMC é o que seus membros, que são os que fazem as regras, decidem que ela seja. Cabe a eles usar essa entidade, que é melhor do que a maioria das outras organizações internacionais se olharmos a proporção entre custo e eficiência, para lidar com os problemas no sistema e corrigi-los.

Os EUA deixaram claro que não vão colaborar com os problemas do órgão de solução de disputas da OMC. O que está em jogo quando o sistema passar a ter apenas um juiz, em 2019?

Os americanos têm de ser mais claros sobre o que propõem para arrumar seu problema com o órgão de solução. É para melhorar o sistema – que faria sentido ao meu ver – ou sobre rompê-lo por conta de sua natureza vinculante, o que seria um passo para trás na governança global? No primeiro caso, existe um amplo espaço para manobrar e negociar. No segundo caso, é melhor se apressar para criar um órgão de soluções sem os EUA ou mesmo uma alternativa “OMC menos EUA”.

Esse é o momento mais perigoso da história da OMC?

Sim, o momento mais perigoso desde que o GATT/OMC foram criados. Mas o que está em jogo é muito mais importante do que se o protecionismo vencer: abertura de comércio, crescimento, bem-estar. E no cenário mais amplo está a rivalidade geopolítica entre EUA e China. Ou eles cooperam e o mundo será um lugar melhor, ou um EUA nacionalista vai querer agressivamente conter a China, que vai se desglobalizar, e o mundo vai ficar um lugar mais perigoso.

Foi um erro aceitar a entrada da China na OMC com tais regras em vigor?

A China pagou seu bilhete de entrar para a OMC a um preço muito superior ao de outros países emergentes, como Brasil e Índia. Sobre os subsídios, hoje a principal área a ser reavaliada no que se refere ao equilíbrio do jogo, eles não foram tocados quando ocorreu a entrada da China (à OMC) pelos demais países, desenvolvidos ou em desenvolvimento. Eles temiam que seus próprios subsídios pudessem ser alvos de disciplinas também. Em retrospectiva, isso foi certamente míope. Mas não haverá uma segunda entrada da China à OMC. Outros também terão de trazer concessões à mesa.

A democracia está em perigo?

Sim, sem dúvida. Trata-se de uma mudança extraordinária para minha geração que pensou que não existe mais uma volta atrás onde as democracias eram estabelecidas. Sabíamos que Hitler e Mussolini foram de alguma forma eleitos e acreditávamos que a vacina tinha funcionado. Mas não é o caso quando olhamos para deslizes perigosos ou sinais na Turquia, na Hungria, nas Filipinas ou mesmo no Brasil. Políticos eleitos frequentemente fracassaram em dar o que as pessoas esperavam – progresso econômico e social justo, um governo limpo e meio ambiente. Ao mesmo tempo, a instabilidade cultural aumentou e a confiança nas instituições caiu como resultado de uma mudança extremamente rápida na tecnologia e em valores tradicionais. Por isso, o apelo de líderes carismáticos que prometem retornar a um passado idealizado.

No Brasil, o presidente eleito Jair Bolsonaro indicou que o Mercosul não é prioridade, deu sinais de aliança com EUA e Israel. Questionou acordos internacionais, atacou China. A UE e outros que lutam pelo multilateralismo deveriam se preocupar com o fato de Trump ter agora um aliado nesses temas?

Vamos esperar para ver quando dos slogans de campanha de Bolsonaro se tornarão realidade. Custo a acreditar que o Brasil possa emular os EUA. O Brasil não está nem perto dos EUA em termos de tamanho econômico, tecnológico, cambial e militar. Aliar-se aos EUA em um antagonismo contra o resto do mundo, incluindo a China, seria uma aposta muito arriscada e com poucos benefícios, enquanto reposicionar o Brasil num campo intermediário me pareceria ser algo que oferecia mais oportunidades aos interesses do País. O Brasil que eu conheço é um país orgulhoso, nunca um seguidor.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Jamil Chade, correspondente
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