Variedades
Canções para o fim do mundo
Juliano Gauche pega a mão do ouvinte, caminha alguns metros, até o alto de um morro qualquer, na beira de uma cidade também qualquer, e se coloca a observar ali, em silêncio, o fim. Um apocalipse desorganizado de um mundo que sequer sabe como vai acabar. Definha, apenas, nas relações humanas, nas pequenas às grandes corrupções, nos desamores e desesperanças. Ali, parado, ele vê. E canta o que está diante de si.
Narrador de pequenas e grandes histórias, dono de canções sem a formatação de estrofes e refrões, de voz serena, que não se excede e, por isso, talvez soe como melancólica. É um canto distante, um relato o que está ali – são os instrumentos da banda que o acompanham nessas canções os responsáveis por trazer a quentura e as texturas.
Assim é Afastamento, o terceiro disco solo de Juliano Gauche, músico, cantor e compositor (ou cantautor, termo usado para compositores com um traço muito próprio na ponta da sua caneta). Nove meses depois de colocar no mundo o álbum Nas Estâncias de Dzyan, o segundo dele, de 2016, Gauche se colocou em “modo criativo” novamente. De uma só vez, em três meses, escreveu pelo menos metade das músicas que viriam a formar Afastamento. “Também escrevi umas 30 laudas de prosa, que cheguei a publicar no Facebook e depois tirei de lá”, conta ele.
Depois do almoço, geralmente, Gauche se dirigia a um quartinho da casa com poucos móveis e um colchão, e se colocava a criar. “O processo criativo é extremamente doloroso”, ele conta. “Depois que tenho a ideia, uma frase inicial, ele segue mais fluído. Isso quer dizer que eu me livrei do demônio. O processo, em si, é complicado. Às vezes, é algo que machuca a gente”, relembra.
Afastamento soa como um momento de pós-dor. Vem de uma distância do sentimento como um todo, passa de ser aquele que sente para se tornar o espectador sem reação a observar esse mundo rachado. Ali, do alto daquele morro imaginário, ele conduz a narrativa com o olhar, com um distanciamento anestesiado, mas não insensível.
No álbum anterior, diante do caos, em um discurso de fluxo fluído, ele clamava: “Por isso te peço, por favor, me ajude a ficar por aqui, sem estragar muita coisa e, se possível, dançando”, diziam os versos da canção de mesmo nome do disco, Nas Estâncias de Dzyan. “O meu ponto de vista, que amarra esse novo disco, é meu afastamento. De ver aquilo que canto e com um desejo de me colocar cada vez mais distante disso. É um desconforto, não em tom de crítica”, explica.
Juliano Gauche canta quase como fala. Do outro lado da linha, ele está há minutos de gravar a participação no programa Cultura Livre, da TV Cultura, apresentado por Roberta Martinelli (colunista do C2), mas pondera, tranquilo, sobre as dores e sabores de se criar mais um disco. Com Afastamento, aponta ele, está encerrada sua trilogia de álbuns como artista solo – ele despontou, antes disso, como integrante da banda Solana.
O terceiro trabalho se junta a Juliano Gauche (2013) e o citado Nas Estâncias de Dzyan (2016) e amarra o conceito de tríade com o sabor de baterias eletrônicas, em loopings hipnotizantes, contrastadas pelo calor produzido pela banda dele, formada por Daniel Lima (baixo), Gustavo Souza (bateria e percussão), João Leão (teclado) e Kaneo Ramos (guitarra). Na produção, Gauche divide as funções com Fernando Catatau, líder da banda Cidadão Instigado.
Ocorre que no tal “afastamento” proposto pelo discurso de observador de Gauche, ele se aproxima mais de quem é. A jornada se torna introspectiva involuntariamente. Desde o herói despedaçado Silmar Saraiva, da música de abertura com seus mais de seis minutos de duração, a Dos Cachorros, política, ferida, música de encerramento. Do início ao fim, a dose de melancolia dos vocais deliciosamente pálidos goteja incessantemente, como uma torneira mal fechada em uma madrugada estranhamente silenciosa na cidade grande.
É a solidão, no fim, que amarra as oito canções de Afastamento ao longo de 31 minutos. E chega ao seu auge – ou fundo do poço – quando, ao final do lado A do álbum, entra Dos Dois, uma canção capaz de transformar pequenos três minutos e meio na imensidão de uma casa vazia quando a outra parte de um casal vai embora. Ela saiu, ele ficou. “Ela foi voando para um novo amor”, canta Gauche, “ele, esperando, pelo mesmo amor”. No descompasso, a relação se quebra em pedaços e Gauche é preciso ao retratar cada um desses cacos. E, no silêncio mesmo silêncio que ele levou o ouvinte para aquele morro imaginário a observar, o músico se vai. Restam os cacos, aqueles.
JULIANO GAUCHE
Biblioteca Mario de Andrade
R. da Consolação, 94, Consolação. Hoje (dom.), às 15h.
Entrada gratuita.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Autor: Pedro Antunes
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