Variedades
Música: Um outro Donato
Não foram um nem dois, mas três os elos perdidos deixados por João Donato. Se o próprio acreano foi considerado por anos uma espécie de óvni na música brasileira desde sua chegada ao Rio, em 1945, imagine o que diriam das gravações consideradas obscuras demais. Essas nem virariam álbuns.
“Nem vem que eu não gosto de meninos prodígio”, disse Ary Barroso ao ver o menino de 12 anos querendo participar de seu programa de rádio com um acordeão grudado no peito. Era um sinal. O que viria depois, até que ele se tornasse o cultuado João Donato, seria muito pior.
Um rápido retrospecto fica assim: Donato chegou ao Rio do Acre cheio de vontade de entrar na turma. Perambulou o quanto pôde mas sentia que não se encaixava nas sonoridades dos anos 1950 com facilidade. Partiu para os Estados Unidos. Lá, perambulou o quanto pôde ouvindo dizer que aquilo que fazia não tinha serventia por não se tratar nem de música brasileira nem de jazz. Acabou salvo pelas orquestras latinas de Mongo Santamaria e Tito Puente.
Voltou ao Brasil com a bossa nova em pleno vigor físico e, de novo, perambulou até ouvir de Agostinho dos Santos que sua música era linda, mas deveria ter voz. Quando já pensava em deixar tudo e voltar a perambular pelos Estados Unidos, Marcos Valle o pegou pelo braço e o levou ao estúdio para gravar Quem é Quem?, disco que só ganharia show de lançamento quarenta e um anos depois, em 2014.
O que viria depois seria melhor, mas Donato nunca se livraria dos momentos de incompreensão sobre o que fazia e de algum grau de impotência sobre a própria produção. Seu fluxo criativo incansável dos últimos anos em nada se parece com o sumiço de seus álbuns de estúdio entre 1975 e 1996 (em 1986 saiu um milagroso Leilíadas) a retomada de fato seria com Coisas Tão Simples. Donato gravou três discos que jamais lançou e que só agora chegam à luz. Gozando a Existência é de 1978; Naquela Base é de 1988 e Janela da Urca é de 1989. Os três, mais um álbum especial de raridades, são lançados agora pelo selo Discobertas, do produtor Marcelo Fróes, em uma caixa de nome A Mad Donato (alusão ao disco A Bad Donato, de 1970, uma preciosidade).
O projeto nasceu com um susto. Em 2014, autorizado por Donato, Marcelo Fróes abriu um armário na casa do músico e caiu para trás. “Havia ali umas 800 fitas cassete. Eu pirei.” Todo o material estava incrivelmente organizado, com datas de gravação e fichas técnicas, como se estivesse sido cuidado por um fã. “Ele mesmo deixava esses projetos para trás.” Gozando a Existência, de 1978, pode ser considerado o mais emblemático dos materiais da arca de Donato.
Conhecido também como Prossiga, o álbum experimental de Donato estava previsto para ser um disco triplo. Com um estúdio da gravadora a seu dispor, cedido pelo bom coração de Roberto Menescal, ele recebeu, entre setembro e outubro de 1977, e outras sessões em julho de 1978, um batalhão de músicos e amigos para gravar tudo aquilo de que nem Donato fazia noção do que seria. Sem nenhum arranjo escrito, juntou gente que não acabava mais. Djalma Correa, Ed Maciel, Eloir de Moraes, Erasmo Carlos, Helvius Vilela, Lysias Enio, Marku Ribas, Maria Helena Toledo, Orlandivo, Vinicius de Moraes, Nara Leão, Miúcha, Cristina (Buarque), Alaíde Costa, Rosinha de Valença, Beth Carvalho, Gal Costa, Quarteto em Cy, Luiz Alves, Dominguinhos, Jackson do Pandeiro, Fernando Leporace, Novelli, Luizão, Robertinho Silva, Nelson Angelo, Luiz Bonfá, Marcio Montarroyos, Bill Horn, Mauricio Einhorn, Franklyn, Paulo Moura, Djavan, Chico Batera, João Palma, Dori Caymmi, Paulinho Jobim, Guarabyra, Walter Queiroz, Paschoal Meirelles, Laércio de Freitas, Telma Costa, Georgiana de Moraes.
Era gente boa até demais, tanto que o próprio Donato perdeu o controle da coisa. A uma certa hora, nem ele sabia quem tocava o quê. Três bateristas, dois baixistas, outros três guitarristas. Nem as fichas técnicas deram conta de explicar quem é quem no álbum mais ousado de Donato. Ele fala sobre aquelas tardes de estúdio livre. “Foi todo mundo pra lá sem cobrar nada, imagine. Vamos fazendo o que a gente quiser fazer, eu disse a eles.” Se tem vontade de mudar algo ao ouvir as gravações? “Ah, ficou livre até demais, um pouco pra lá de à vontade. Eu deixei o barco correr muito solto. Faltou uma direção.”
No repertório, aparece um Djavan com a voz jovem cantando a bela Canto da Lira e Alaíde Costa fazendo um voo psicodélico com a voz no tema título, Gozando a Existência. Três músicas acabariam sendo lançadas no disco Clube da Esquina 2, de 1978. “Como a gente não lançou o disco, eles (os autores) levaram suas músicas para o disco do Milton. Normal, não fiquei bravo não”, lembra Donato. As músicas são Olho Dágua, de Paulo Jobim e Ronaldo Bastos; Testamento, de Nelson Angelo e Milton Nascimento, e Toshiro, de Novelli. “Ficou mesmo um disco quase psicodélico”, diz João, quando o mundo pensava já conhecê-lo por inteiro.
Autor: Julio Maria
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