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Provas da Lava Jato podem ser anuladas? (Sinal amarelo da Suíça)
Uma Corte Penal suíça (em jan/16) decidiu que as provas das contas bancárias das offshores (empresas constituídas em paraísos fiscais) da Odebrecht (contas usadas para pagar propinas – sobre isso não há dúvida) não poderiam ter sido enviadas ao Brasil da forma como o foram.
Houve vício procedimental (mas retificável, disse a Corte). O juiz Moro desconsiderou essa irregularidade e afirmou que as provas são válidas. Vai levá-las em conta em sua sentença. O sinal amarelo foi dado pela Suíça.
Há risco de os tribunais brasileiros anularem essas provas? Com fogo não se brinca! A Justiça criminal brasileira, impulsionada, por cima, pelas pressões internacionais e, por baixo, pelo apoio popular, está dando uma demonstração de força.
É nítida no Brasil neste momento uma nova acomodação de forças dentro do Estado. Mas não se pode cair no “vale tudo” do direito penal do inimigo (sustentado pelo doutrinador alemão Jakobs) ou do delitum exceptum (tratamento excepcional que geraria risco para toda a Operação Lava Jato).
A delinquência econômica cleptocrata (DEC), tanto quanto o crime organizado violento (PCC, por exemplo) ou a máfia (Cosa Nostra, por exemplo), possui fortes laços sociais (em todos os poderes) que são coniventes com ela. Não se pode desprezar essa realidade.
O sociólogo francês Emile Durkheim afirmava que os laços sociais decorrem do ordenamento jurídico, da lei (que simboliza a consciência moral coletiva). Isso é verdade, em parte. A delinquência econômica cleptocrata (DEC) também gera laços sociais que produzem ações sociais motivadas pela expectativa de gratificações ou satisfações múltiplas. A DEC faz parte da ordem social implantada no Brasil e contribui imensamente para a reprodução do sistema de desigualdade persistente[1].
Provas lícitas e ilícitas
O assunto provas tem tudo a ver com a chamada presunção de inocência do réu. Um movimento jus-filosófico chamado Iluminismo (séculos XVII e XVIII) foi o responsável pela criação desse princípio (no final do século XVIII e começo do século XIX), que afirma o seguinte: no campo criminal, enquanto não haja condenação penal definitiva, o réu é presumido inocente.
Todo jogo tem suas regras. No futebol ninguém pode marcar gol em impedimento ou com as mãos (desgraçadamente Maradona fez um gol assim e foi validado). O jogo do processo penal começa com o placar de 1 a 0 para o réu.
Compete a quem acusa o ônus de provar que ele é culpado. O réu começa com a presunção de inocência, mas pode resultar condenado, porque ela é uma presunção relativa (iuris tantum). Tudo depende das provas. Mas não é qualquer prova que derruba a presunção de inocência.
Para afastar a presunção de inocência (para virar o jogo) a prova deve ser quantitativamente suficiente (prova além de toda dúvida razoável – “beyond a reasonable doubt”) e qualitativamente legítima (ou seja: produzida com a estrita observância de todas as garantias processuais: legais, constitucionais, internacionais, éticas etc.).
Se a quantidade de provas não supera a dúvida razoável, pode-se dizer que houve empate: 1 a 1. O empate, no processo penal, beneficia o réu (in dubio pro reo). Na dúvida o réu deve ser absolvido (“É melhorcorrer o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente” – Voltaire).
Se a qualidade da prova obtida é ilegítima (porque violadora das regras legais, constitucionais, internacionais e éticas), a prova não vale (é gol em impedimento). Prova obtida ilicitamente não tem valor jurídico. Deve ser retirada dos autos do processo. Não desmorona a presunção de inocência.
Se a “função” das provas é a de “fixar os fatos no processo e, por conseqüência, no próprio universo social”, de tal modo a “legitimar” a decisão judicial, resulta indeclinável, como observa Antonio Magalhães Gomes Filho[2], “a exigência de submissão dos procedimentos probatórios a certas regras – lógicas, psicológicas, éticas, jurídicas etc. –, cuja inobsevância acarretaria uma inevitável fratura entre o julgamento e a sociedade no seio da qual o mesmo é realizado”.
Tudo isso faz parte do jogo. A subversão já ocorreu em milhares de processos no Brasil. O destaque vai para as Operações Castelo de Areia e Satiagraha. As provas derivadas diretamente das ilícitas também não valem (aplica-se aqui a teoria da árvore envenenada que dá fruto maculado).
A regra é clara (diria um comentarista de futebol): as provas devem ser obtidas de forma absolutamente lícita. Mais: quando somos processados criminalmente, deixamos a nossa companheira chamada hipocrisia de lado e todos nos igualamos: somos todos indistintamente liberais (leia-se: queremos em nosso benefício todas as garantias liberais). Aqui não há margem para a costumeira hipocrisia.
Há um ditado norte-americano que diz: “Não existe ninguém mais conservador que um liberal quando é assaltado, não existe ninguém mais liberal que um conservador quando é processado e não existe nenhum conservador mais reformador de presídios quando condenado à prisão”. Assim somos. Louvado seja a providência!
Para a Justiça, sobretudo no momento da obtenção das provas (que podem derrubar a presunção de inocência), é muito pertinente a metáfora da locomotiva: não pode andar fora dos trilhos (dos binários).
Qualquer deslize significa descarrilhamento na certa. Castelo de Areia e Satiagraha desembestaram e viram o fundo do abismo. Tudo virou pó (por força das nulidades). Entregaram o ouro para os bandidos (leia-se: para barões acusados de serem ladrões).
A Lava Jato também vai se desembestar? Tomará o mesmo rumo das operações desastradas anteriores?
Ícaro e seu pai Dédalo (que era arquiteto) estavam refugiados em Creta, junto ao rei Minos. Depois do nascimento do filho deste, Minotauro (corpo de homem e cabeça de touro), foi construído um labirinto para aprisioná-lo. Ele acabou sendo morto por Teseu.[3]
Ícaro e Dédalo ficaram presos no labirinto. Este, para reconquistar a liberdade, construiu asas artificiais, usando cera do mel de abelhas e penas de gaivotas. Antes da fuga, o pai alertou o filho de que não podia voar perto do Sol, porque ele derreteria a cera das asas coladas ao seu corpo; nem muito perto do mar porque, se tocasse suas águas, suas asas ficariam muito pesadas.
Ícaro não ouviu os conselhos do pai e foi tomado pelo desejo de voar próximo ao Sol; o calor fez com que perdesse as asas e despencasse no mar Egeu, enquanto seu pai, aos prantos, voava para a costa.
Moral da história mitológica: Ícaro pode voar alto, talvez até consiga atingir alturas impensáveis, mas não pode atingir o cume, o topo, ou seja, o Sol. A Lava Jato pode ir muito longe (e irá, certamente), mas não pode descarrilhar na obtenção das provas.
Com toda Operação Lava Jato, que pela primeira vez de forma sistemática está subjugando a delinquência econômica cleptocrata (DEC), composta de poderosos intocáveis (máximos barões ladrões do País), nós estamos juntos. Mas vamos com ela até a porta do cemitério. Entrar na cova junto com ela é burrice evitável.Ad impossibilia nemo tenetur.
Na operação Lava Jato estamos vendo criação, inovação e ruptura com nossa tradição de quase absoluta impunidade dos barões ladrões que ilustram a delinquência econômica cleptocrata (DEC). “O viver não é necessário. O que é necessário é criar” (Fernando Pessoa).
Mas a qualidade de uma revolução policial/judicial como essa não pode ser medida exclusivamente pelo quanto ela está inovando, sim, também, pelo quanto está observando o Estado de Direito (as regras do jogo, as rules of law).
As decisões da Suíça
Em quatro decisões (de 19 a 22 jan/16), relacionadas com as offshores Smith & Nash, Golac, Sherkson e Havinsur – empresas da Odebrecht abertas em paraísos fiscais e que operam contas bancárias na Suíça, por onde teria passado suborno da empreiteira brasileira para os ex-diretores Paulo Roberto Costa, Renato Duque e o ex-gerente Pedro Barusco -, decidiu-se o seguinte[4]:
(a) os procuradores suíços erraram (não observaram os procedimentos adequados);
(b) mandaram para o Brasil informações excessivas, desproporcionais, caracterizadoras de uma “entraîde sauvage” (colaboração selvagem, em tradução livre);
(c) não ouviram nenhum representante das offshores antes do envio dos documentos (cerceamento do direito de defesa);
(d) as provas enviadas não precisam ser devolvidas;
(e) as provas enviadas podem ser utilizadas no Brasil;
(f) o Brasil não é o culpado pelas irregularidades;
(g) os procuradores suíços devem revisar seus procedimentos;
(h) devem ouvir representantes das offshores;
(i) após a revisão e as oitivas os atos de cooperação poderão ser considerados legais pelo tribunal.
Por ora, como se vê, as provas enviadas podem ser utilizadas, mas sua validade final depende de duas exigências: revisão do procedimento e oitiva dos representantes das offshores. Depois disso é que elas serão validadas definitivamente.
O uso imediato dessas provas (não está impedido, é verdade) conta com uma margem de risco. Se elas forem invalidadas na Suíça, afetará o processo no Brasil. O sinal amarelo foi dado. Moro vai utilizá-las sob esse sinal amarelo. Os tribunais brasileiros, como donos do semáforo, é que dirão, de forma definitiva, “vermelho ou verde”. Aguardemos!
O advogado Pascal Maurer, que representa a Construtora Norberto Odebrecht na Suíça, atribui ao procurador suíço Stefan Lenz a responsabilidade pelas irregularidades: “Provavelmente o sr. Lenz quis ajudar os colegas brasileiros e foi longe demais”, disse Maurer[5].
[1] Ver PEGORARO, Juan S. Los lazos sociales del delito económico y el orden social. Buenos Aires: Eudeba, 2015, p. 16.
[2] Ver Sobre o direito à prova no processo penal, Tese para concurso de livre-docência do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, SP, 1995, p. 90.
[3] Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dcaro, consultado em 12/01/16.
[4] Ver http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/02/1736248-corte-suica-considera-irregular-envio-ao-brasil-de-provas-contra-odebrecht.shtml, consultado em 12/01/16.
[5] Ver http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/02/1736248-corte-suica-considera-irregular-envio-ao-brasil-de-provas-contra-odebrecht.shtml, consultado em 12/01/16.
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