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Morte de Herzog serviu para impulsionar o movimento contra a ditadura no Brasil

23/10/2015
Morte de Herzog serviu para impulsionar o movimento contra a ditadura no Brasil

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Há 40 anos, em São Paulo, morria o jornalista, professor e dramaturgo Vlado Herzog. Ele nasceu na Osijek, em 1937, na Iuguslávia, hoje a atual Croácia, mas naturalizou-se brasileiro e passou a ser chamado de Vladimir Harzog. Por causa de suas atividades no cinema amava a fotografia e também se dedicou à ela.
Ele se formou em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e trabalhou em importantes órgãos de imprensa, como  O Estado de São Paulo (USP), no Brasil, e a BBC, de Londres. Harzog foi professor de jornalismo na Escola de Comunicações e Artes da USP e diretor da TV Cultura de São Paulo.
Em 1964, tornou-se peça central no movimento pela restauração da democracia e contra a ditadura no Brasil, militando pelo Partido Comunista Brasileiro.  Mas no dia 25 de outubro de 1975, foi torturado até a morte pelo regime militar brasileiro, em um antigo prédio da rua Tomás Carvalho, no bairro Paraíso, em São Paulo, onde funcionava o Destacamento de Operações de Informações (DOI), departamento do Centro de Operações de Defesa Interna (CODI), órgão subordinado à Segunda Divisão de Exército e parte da organização hierárquica do Comando Militar do Sudeste.
Sua morte gerou uma grande onda de protestos de toda a imprensa mundial, mobilizando e iniciando um processo internacional em prol dos direitos humanos no Brasil e em toda a América Latina,  e impulsionou fortemente o movimento contra a ditadura. Grupos de intelectuais, atores e todo o povo se empenharam na resistência contra a ditadura. Como não se sabia se ele tinha se suicidado, como tinha sido divulgado pelo Estado, ou se a polícia tinha matado Herzog, foram criadas atitudes sociais e de revolução.
O ator Gianfrancesco Guarnieri, por exemplo, escreveu o espetáculo teatral “Ponto de Partida”, que tinha como objetivo mostrar a dor e a indignação da sociedade brasileira diante da morte de Herzog.

 

O cruel assassinato

 

Vladimir Herzog, o Vlado, foi assassinado no dia 25 de outubro de 1975, sábado, num antigo prédio da rua Tomás Carvalhal, no Bairro do Paraíso, em São Paulo, onde funcionava o DOI, departamento do CODI, órgão subordinado à Segunda Divisão de Exército, parte da organização hierárquica do Comando Militar do Sudeste, sediado na capital paulista. Então diretor de jornalismo da TV Cultura e responsável pelo telejornal “Hora da Notícia , o jornalista fora procurado na noite anterior em seu local de trabalho por dois agentes que pretendiam levá-lo para “prestar depoimento” sobre suas supostas ligações com o Partido Comunista Brasileiro, agremiação que funcionava na clandestinidade desde o golpe militar de 1964.
Após uma tensa negociação, Vlado comprometeu-se a se apresentar espontaneamente na manhã seguinte.
Chegou à sede DOI-CODI, às 8 horas, levado àquele endereço pelo jornalista Paulo Nunes, que cobria a área militar na redação da Cultura e dormira na casa do diretor da TV naquela noite para assegurar que ele se apresentaria na instalação militar logo cedo. Nunes foi dispensado na recepção e Vlado encaminhado para interrogatório.
Foi, então, encapuzado, amarrado a uma cadeira, sufocado com amoníaco, submetido a espancamento e choques elétricos, conforme o manual ali praticado e seguindo a rotina a que foram submetidos centenas de outros presos políticos nos centros de tortura criados pela ditadura e financiados em boa parte por empresários que patrocinavam ações repressivas e de violação dos Direitos Humanos, como a Operação Bandeirante.

 

  A VIÚVA CLARICE, com o filho, e a foto do suicídio forjado: União foi condenada pelo crime em 1978

A VIÚVA CLARICE, com o filho, e a foto do suicídio forjado: União foi condenada pelo crime em 1978

 

A farsa do suicídio

 

Mas o assassinato brutal, por espancamento, não era o limite a que podiam chegar os feitores do regime ditatorial. Esquivar-se da responsabilidade pelo crime forjando uma inverossímil cena de suicídio seria o próximo passo dos torturadores. Com uma tira de pano, amarraram o corpo pelo pescoço à grade de uma janela e convocaram um perito do Instituto Médico Legal para fotografar a “prova” de que o preso dera fim à própria vida, em um surto de enlouquecido arrependimento por ter escrito uma confissão que aparecia rasgada, no chão, na imagem divulgada pelos órgãos de repressão. A cena da morte de Vlado, fotografada pelo perito do IML, foi representada pelo artista Elifas Andreato no quadro “25 de Outubro” .
Na pressa para montar esse circo macabro, ignoraram detalhes como o fato de Vlado ser mais alto do que a janela com gradeonde supostamente enforcou-se e a rotina de encarceramento que tira dos presos qualquer instrumento com o qual se possam enforcar, cintos e cadarços entre eles. Criaram, assim, uma mentira tão flagrante que a Sociedade Cemitério Israelita nem considerou a hipótese de enterrar o corpo na área reservada aos suicidas, como determina a prática religiosa. Mas, no Inquérito Policial Militar que viria a ser instaurado em razão da morte ocorrida em instalação oficial, o promotor Durval de Araújo – um defensor e protegido do regime – ainda sustentaria que o sepultamento aconteceu no setor de suicidas, recorrendo a depoimentos contraditórios e, mais que isso,se esforçaria para distorcer o que diziam vários depoentes.
Por exemplo, a mãe de Vlado disse que sentiu que também queria morrer ao receber a notícia da perda do filho. E o promotor tentou registrar nos autos que ela “sentiu vontade de suicidar-se também”.
O promotor queria encerrar o assunto, mas a luta de sua esposa Clarice Herzog para esclarecer totalmente aqueles episódios viria a destruir, no futuro, seus argumentos, as distorções que enredava e a parcialidade de sua atuação.

 

Vlado e a política

 

A prisão de Vlado foi uma entre dezenas de detenções determinadas pela Operação Jacarta, conduzida pelo DOI-CODI com a intenção de destruir bases do Partido Comunista em órgãos de imprensa, sindicatos e outras entidades. Vários jornalistas foram pegos bem antes que ele e pelo menos um, Paulo Markun, conseguiu fazer chegar a Herzog e a outros o aviso de que também estavam na mira dos sabujos do regime. O plano de Vlado para aquele fim de semana era viajar com Clarice e os filhos para um sítio da família, em Bragança Paulista. Os agentes o alcançaram horas antes da partida.
Um ponto sempre tratado com muita delicadeza por todos os amigos de Vlado diz respeito a seu nível de envolvimento com o Partido Comunista. Pode-se entender que, logo depois de seu assassinato, seria controverso expor sua militância ou não nas fileiras do PC porque isso turvaria a questão principal: a morte de um cidadão sob custódia policial em sessões de tortura conduzidas por agentes do Estado. Ninguém pode ser submetido a tratamento cruel, reza a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas, para o correto registro na História, é sempre positivo deixar clara a realidade. Vlado era, sim, integrante do que se chama uma base do PC, no caso a base formada por jornalistas e à qual se ligou formalmente quando trabalhava na revista Visão.

 

Em busca da verdade

 

Clarice Herzog seria reconhecida, nos anos posteriores, como uma heroína, por sua determinação em buscar a responsabilização do Estado pela morte do marido, desde o primeiro momento após o assassinato. Em 1979, por corajosa decisão do juiz Márcio José de Morais em processo movido pela família Herzog, a Justiça brasileira condenou a União pelo assassinato de Vlado. Apenas em 2013,a família teve nas mãos uma nova certidão de óbito, na qual a morte foi registrada como resultado de “lesões e maus tratos” infligidos no “II Exército (DOI-CODI)” – um eufemismo ainda para abuso, tortura, homicídio, mas mesmo assim significativo de uma enorme transformação política ocorrida no Brasil com o impulso das forças democráticas que não esmoreceram diante do poder fardado e da violência.
Os depoimentos de Sérgio, Markun e outros jornalistas presos no DOI-CODI naquela data – entre os quais Anthony de Christo, Rodolfo Konder, George Duque Estrada, Diléa Frate e Luiz Weis – seriam fundamentais no esclarecimento da farsa. Tecnicamente, a descrição registrada no novo atestado pode estar certa. Mas, política e socialmente, as razões da morte de Herzog, além da tortura, foram o ódio, a intolerância, o preconceito, a discriminação e todas as outras formas de violência que levam à existência de mártires. Na verdade, sua trajetória demonstrava a determinação, isso sim, de superar o risco de se tornar um mártir e vencer a tragédia de perseguição racista que vivera ainda na infância.

 

VLADO HERZOG, ou Vladimir Herzog, foi jornalista, professor e dramaturgo

VLADO HERZOG, ou Vladimir Herzog, foi jornalista, professor e dramaturgo

 

 

A morte de Vlado e a História do Brasil

 

O assassinato de Vladimir Herzog se tornaria um desses raros episódios que marcam a História por muitos aspectos. Foi, naturalmente, uma tragédia para Clarice e para os filhos Ivo e André, bem como para centenas de amigos, milhares de jornalistas e milhões de brasileiros, violentamente privados da convivência, da camaradagem, da inteligência e do talento de um pai, amigo, companheiro, colega, profissional e cidadão que, aos 38 anos, teria ainda muito a contribuir para a história de cada um.
Mas foi também um momento que viria a impulsionar a luta pela redemocratização do país, a começar pelo ato ecumênico realizado na Catedral de São Paulo, seis dias depois de sua morte , conduzido pelo cardeal D. Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor James Wright, no qual oito mil pessoas enfrentaram o medo e os cercos militares para dizer “basta” de viva voz.
Entre as muitas teorias construídas para explicar os motivos de os algozes do regime mataram Vlado, há duas que se destacam. Uma delas o empresário José Mindlin, na época secretário da Cultura do Estado de São Paulo e responsável pela contratação de Vlado pela TV Cultura, ouviu do então governador Paulo Egídio quando apresentou sua demissão do cargo, em razão do assassinato: “Você está liberado”, disse-lhe o governador, conforme Mindlin narraria anos depois.
“Mas sua saída enfraquece a corrente de resistência contra a ala radical do Exército que comanda a repressão. Eles pegaram o Vlado para pegar você. Pegariam você para me pegar. E me pegariam para derrubar o presidente”.
Segundo essa tese, o general Ernesto Geisel, presidente que então imprimia a chamada “política de abertura lenta e gradual”, enfrentava uma rebelião promovida pelos militares da “linha dura”, que tentavam demonstrar a existência de infiltração comunista nos aparelhos do Estado para justificar a continuidade e a intensificação da violência do regime de exceção. “Nós, que fomos presos naquele momento, éramos como o marisco, entre a dureza das pedras e a violência da maré”, comparou uma vez o jornalista Paulo Markun, um dos 12 profissionais de imprensa que estavam na carceragem do DOI-CODI naquele dia fatídico do assassinato de Vlado.
A outra teoria supõe que era Geisel, orientado por um ideólogo do regime, o general Golbery do Couto e Silva, quem deixava a direita à vontade para a prática clandestina da violência contra militantes da esquerda organizada, com o objetivo de tirá-los do cenário da futura redemocratização, via “abertura”. Ninguém sustenta, no entanto, que a morte de Herzog tenha sido premeditada. Ocorreu pela desmedida violência na atuação dos torturadores. E gerou consequências que alteraram o rumo da História do país.